Não foi feita para se quebrar. Era um cristal, desses que se
deve ter cuidado, como herança de família.
Não foi feita para se rasgar. Muito mais valiosa que essas notas
às quais atribuem valores e que perdemos a vida correndo atrás. Era para ser
como carta última do grande amor, intocável.
Não foi feita para secar. A fonte deveria jorrar, ininterrupta.
Deveria saciar a quem a buscasse. Devia ser descanso, pausa, dia de domingo.
Não era para se desfazer. Deveria ser uma espécie de fortaleza,
altiva como castelo medievo, mas era tão frágil... tão fácil de se desmanchar
que parecia uma miragem e as miragens deveriam ser limitadas aos desertos. Mas
essas estavam por aí, crescendo e multiplicando-se à luz do dia, diante dos
olhos.
Não era para ser faca de dois gumes. Sequer era para ser faca ou
arma ou cortar, mas é que a fizeram de tal maneira que causava dores e
ferimentos ao seu doador quando mal aproveitadas.
E se se quebrava, se se partia, restavam os cacos, muitos.
Pedaços múltiplos, diversos em tamanhos e formas, aleijões.
Cacos. Acho que no fundo temos vocação para gostar de cacos,
pedaços. Nascemos artesãos! Nosso talento esta aí! E, para valer nosso ofício,
escolhemos uma especialidade e optamos pelos mosaicos (do que somos, do que
gostaríamos de ser e do que jamais alcançaremos).
Aquela confiança era para ser o sentimento mais nobre. Era para
ser o mais valorizado. Era para ser guardada a sete chaves. Milagre que não
precisa ser contado, porque todo mundo um dia o vive. E mais de uma vez,
fazendo-o perder o seu encanto, quiçá sua importância.
Era um dia de feira comum, nem feriado, nem dia santo. Só um
dia. As mesmas vinte e quatro horas, o mesmo número da folhinha, do calendário,
a mesma impressão de repetição, mas a confiança depositada com devoção, com
desprendimento foi quebrada. Isso fez daquele dia um marco dorido.
Quem depositou a tal confiança era beduíno errante, dono de um
tesouro embrulhado em tapetes raros, em busca de oásis para sua nobreza de
caráter, para o seu voto (devoto) de esperança de que as pessoas merecem uma
mão estendida, mas viu-se em tempestade de areia, que lhe encheu os olhos.
Dos olhos empoeirados, a descrença, o aprendizado que vem do
quebrar-se em mil. O desapontamento. A impotência e o quase arrependimento, só
não se arrependeu porque já havia aprendido a chorar e fazia dessa ação a sua
virtude de renovação.
Dos olhos empoeirados brotavam cristais salgados que
misturavam-se ao pó e davam a certeza de que as mãos que enxugariam a cachoeira
do rosto, seriam, na verdade, mãos de oleiro, moldando a nova criatura, mais
rica em aprendizado.
As mãos seriam de artesão, que com os cacos da confiança
depositada, faria a sua arte: faria um mosaico. E, olhando de longe, se o
resultado é bonito, ninguém se importa com os remendos. E, olhando de perto,
ninguém se importa com os tamanhos dos cacos, porque quem confia um dia, por
mais que doa, voltará a confiar, porque lhe é natural.
Confiança quebrada corta a carne, os dedos de quem ajunta seus
pedaços, mas as cicatrizes não tardam e logo o caravaneiro parte e novo oásis
se descortina.
Triste é saber que uma parte do que se quebra fica pelo caminho,
mas é bonito ver a arte que se faz com o que sobra: reinventar-se é dádiva.
Nem todo mundo sabe chorar. Nem todo mundo sabe (re)construir-se
a partir de escombros ou pedaços. Raridade é mostrar-se ao mundo como é,
inteiro e aos pedaços, vivo, pulsante. Confiante de que há um novo dia, uma
nova chance, e novos mosaicos serão feitos.
Não é questão de querer. É questão de respeitar o dom que se
tem: o de ser. E a isso não se pode dar um fim ou um pronto e acabou. Só se
pode ser.
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