Visitas da Dy

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Extrapolar-se



Quando já não cabemos em nós, transbordamos.
Quando os sentimentos nos invadem, derramamos.
Quando as palavras já não conseguem nos traduzir,
Buscamos novos meios de nos expandir.
A arte é expor-se de tantas formas quanto é possível
(Por vezes até tatear o impossível)
A arte é essa vontade que surge:
De nos mostrarmos
De querermos ser vistos sem limites,
De nos tornamos eternos,
Memória inesquecível!
A arte é extrapolar-se!

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O Tempo e a Pressa



(Para ler ouvindo Una Mattina de Ludovico Einaudi)




Quando todos dormiam no sossego e aconchego de suas camas eu estava acordada. Enquanto os homens tolos pensavam ser donos de si e de seus desejos eu já planejava o seu dia de amanhã, prevendo que seriam os seus próprios lobos sem que se dessem conta.
Por minhas próprias mãos dei forma e vida a dois filhos igualmente dependentes um do outro, como gêmeos siameses. Antes que cada um deles abrisse os olhos para o novo dia eu os nomeei. E escolhi os seus nomes de maneira que nenhum homem se esquecesse. Seriam um binômio quase tão perfeitos quanto antagônicos: Tempo e Pressa.
Ao parir esses dois, aceitei, de bom grado, acolher em meus braços outros filhos: o Antes e o Depois, que cresceriam ao lado do Tempo, da Pressa e dos homens. Outros filhos viriam, eu sabia. E aceitei cada um a seu tempo, compondo o ritmo do mundo, o ritmo de toda a minha criação.
Deixei que os homens despertassem e se lançassem em sua correria diária em busca de meu querido Tempo, que já perdiam quando se enlaçavam com a Pressa.
Ao homem faltava um tanto de discernimento para perceber que a irmã gêmea do Tempo era quem mais concorria para o afastamento entre eles. A Pressa levava os homens rumo ao sem-Tempo em passos cada vez mais largos.
Sou ré confessa. Revelo que criei ao mesmo tempo a salvação e a perdição de todo aquele que se pega desatento na vida. Para quem tem a Pressa como companhia, acaba faltando o Tempo e, para todo Antes não planejado, sofre-se um Depois de incertezas.
Diante de minhas criações, os homens aprenderam a se virar e a criar. E a cada nova criação se voltavam a mim dando-me novos filhos e filhas, os quais recebi e acalentei. Um deles, uma jovem, na verdade, eu chamei de Saudade, que nasceu bem no dia em que o Tempo percebeu-se diante da distância entre os homens.
A Saudade era moça de aparência doce, quase lívida, que sabia bem causar dor, mas sabia também ser leve. Ela gostava de passear nos sonhos, de visitar as infâncias, de abraçar os amigos perdidos pelo Tempo e a Pressa. Gostava de sentar nas janelas dos corações e ficar ali, jogada em um canto. Às vezes flertava com a Tristeza. E era teimosa. Só saia do coração quando recebia um abraço ou via sua irmã Alegria chegando.
Ah, esses homens... Abriam mão de sua inocência por pouco. Perdiam-se em descaminhos por caprichos vãos, mas eram incansáveis. Buscavam meios de recomeçar sempre. Tanto que criaram o Perdão. Tão nobre quanto difícil, mas sublime ao ser bem recebido.
Ah, esses homens, de olhos curiosos, atentos, fixos, com suas retinas sempre muito bem preparadas para observarem as histórias que o mundo pintava... Eles ainda me surpreendiam... Tanto que criaram o Amor. E esse veio a ser o filho que abracei com o maior cuidado, com a maior admiração.
O Amor era multiforme, multicolorido, adaptável ao mundo inteiro e capaz de habitar tantos lugares quanto era desejado. Incansável. Destemido. Quase uma semente que é capaz de morrer para renascer com mais força, dando frutos que se multiplicam. E talvez fosse mesmo uma semente. Dessas aladas, que se espalham e alcançam lugares inimagináveis.
Enquanto os homens dormiam, eu os admirava. Eles já haviam se perdido e se reencontrado. Eles tinham tudo para desistirem logo que acordassem, mas persistiram.
Eram os aprendizes eternos e se tornaram professores. Eram criaturas e acabaram por ser criadores. Tornaram-se fortes diante de cada fraqueza. Cresceram diante de cada obstáculo e, por mais que o Tempo passasse rápido enquanto eles tinham Pressa, aprenderam a lidar com cada filho meu: com a Saudade, com a Tristeza, a Alegria, o Perdão e jamais esqueceram do meu filho predileto, o Amor, que gosta mesmo de caminhar próximo da Esperança.

Enquanto os homens dormiam eu me fiz como a mãe da criação, como mito que atravessou os séculos e os velava, garantindo sua segurança no conforto de suas camas, orgulhando-me de como foram capazes de ser muito melhor do que poderiam. Enquanto eles dormiam eu percebi o quanto os quero bem e o quanto nada é pronto e acabado.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Lua Nova

Foto: lua nova na Argélia.


Por mais que eu queira
Não vou passar a vida inteira
Sentada e de braços cruzados,
Esperando a banda passar.
É lua nova, é chance nova!
Por mais que eu tenha me perdido
Pelos caminhos da saudade,
Aquela tristeza foi derradeira!
Agora é lua nova!
Tecerei novos dias,
Viverei outras tardes
E à noite, sairei para ver a lua.
A lua é nova e me convida a enchê-la!
E eu a encherei!
Farei nela a minha morada,
Escreverei seu nome no céu
Com letras disfarçadas:
Os tolos as chamarão de estrelas
Mas eu saberei que são caprichos meus
Fazendo companhia para lua,

Rompendo os breus.

Cantinho


Procurei um lugar onde pudesse colocar
Meus segredos secretíssimos.
Procurei um lugar onde pudesse revelar
Meus segredos secretíssimos.
Procurei um lugar onde pudesse fazer as minhas confissões,
Onde os pecados não seriam julgados,
Os amores não seriam quebrados,
Os abraços não seriam negados,
E os beijos jamais seriam em vão.
Vaguei por noites a fio,
Entrei madrugadas a dentro,
E ali, bem no cantinho, encontrei poesia:
Encontrei gente feita de fantasia,
De alegria, de tantos versos quanto eu,
De tantos sonhos quanto os meus.
De tantos segredos como eu!
Fiz desse cantinho minha morada:
Enfeitei-o de flores e de pássaros em alvorada.
E alvoreceu:
Um mundo de sentimentos,
De cumplicidade,
De amizade,
Dentro de cada um de nós!

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Almas Inquietas



Hoje havia uma esperança de lua cheia. Mas quem se encheu foi o céu. E transbordou. E jorrou. As nuvens desfizeram-se em gotas cintilantes que ao mesmo tempo que molhavam, lavam a alma e a deixavam aberta, inquieta. Bem mais inquieta do que já é.
Parei silenciosa olhando aquelas pequenas gotas de cristais líquidas que tilintavam ao bater no telhado vizinho e me amoleciam os sentidos. Em um movimento lento e ao mesmo tempo rápido eu era tragada pra dentro de mim mesma, observando todas as minhas inquietudes que bailavam no ritmo ditado pelas gotas cadentes.
Seria eu uma alma tão diferente das outras?
Seria eu um ser alheio a este mundo?
Seria eu parte componente de outro lugar perdido nesse espaço-tempo que sequer sei mensurar, sequer sei onde está?
Por vezes, por várias vezes (e se eu as escrevesse não caberiam no papel, se eu as cantasse não caberiam melodias e se eu as contasse faltariam grãos de areia), olho ao redor e não me reconheço.
Não faço parte das ruas: entradas e saídas, rotas lacrimejadas de derrotas, de cacos de sonhos, de ecos roucos. Meus pés não encontram o chão. Meu chão está no céu. De ponta-cabeça é tudo mais interessante, de ponta-cabeça todo mundo tira o chapéu para o dia, para a noite, para a Maria e para o João.
Não faço parte das pessoas: não encontro luz em olhos distanciados de si mesmos, não ouço vozes serenas em dias de feira, não ouço sussurros amorosos. E nem o contrário: não ouço gritos escandalosos ou choros arrependidos. Quando muito reconheço bocas mudas, olhos fechados, ouvidos sedentos de palavras macias.
Não me reconheço no tempo: esqueci-me de dar corda no carrilhão da sala. Esgotou-se a bateria como a esperança depositada nos dias. E os ponteiros parados são como nossos passos nunca dados: são os pés quedados, inertes, das pessoas nas quais não me reconheço, que não se atrevem a ir pelas mesmas ruas que não cabem os meus pés, aquelas nas quais não me reconheço.
Seriam os nossos dias os esboços de um roteiro de um curta-metragem barato? Desses sem fins ou orçamento, sem direção, fadados ao esquecimento?
Não! Não! Não há de ser só isso. Não há de ser só uma imperfeição querendo deixar de existir, querendo transformar-se em novo, em renovo.
Se eu não me reconheço nas ruas, nas pessoas no tempo e se escrevo porque essa agonia a certa altura me corrói por dentro é porque nada está no seu devido lugar. É porque muito ainda há de ser feito e com efeito. Para que possamos assumir os nossos lugares enquanto personagens.
Se eu não me reconheço a cada manhã em que o dia vai mal e se escrevo, me escrevo e lhe escrevo é porque achei guarida em seu peito. E se consegue se reconhecer com a mesma dor que carrego em meu peito é porque lá no fundo somos semelhantes. É porque as nossas almas são inquietas. São inconformadas.
Devemos, então, assumir o posto. Riscar o fósforo e atear o fogo! Se a estranheza é grande, que queime em uma fogueira bem longe, lá pelos círculos de Dante. Se somos estranhos e nos reconhecemos, somos iguais! E por isso nos unimos e é a isso que devemos o brilho de nossos olhos: é por almejar dias melhores, por querer subir no palco da vida e rasgar as nossas dores, sapatear nossas agonias, mastigar nossas solidões, responder nossas questões.
Questões... O ponto de partida e de chegada de nossos corações. O grande motivo real de nossas orações... Giramos o mundo em viagens magníficas. Estudamos as ciências e refugiamo-nos na filosofia, mas do sentimento, do sentimento do mundo, quem sabe somos nós mesmos. Quem sabe é aquele que deita e não consegue dormir. Quem sabe é aquele que experimentou a insônia ávido por mudanças. E é isso o que me tranquiliza.
O que me acalma e traz alento é saber que por mais que eu me perca em pensamento, por mais que eu tenha tanta estranheza, há por aí outros tantos como eu, que buscam o melhor de si, que não se cansam de sonhar e que sabem que a mudança é uma semente resistente que vingará.

Hoje havia uma promessa de lua cheia, mas quem transbordou não foi a lua ou o céu. Foi a vontade de mudar.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

À Ponta dos Dedos


(Texto dedicado a Daufen Bach e Ivana Schafer, editores da REVISTA BIOGRAFIA)

As palavras que já não me cabem vão parar no papel.
Se não mancham o branco com tinta azul ou preta ou acinzentam o imaculado com um grafite fino, ousam, ainda, escapulir pelas pontas dos dedos e se transformam na lógica binária que em poucos cliques traduz-se nos meus pensamentos iniciais.
Escrever é um pouco como forma de autossalvação. É um desafogar-se de si mesma. É parir seres alados todas as noites: esses versos, essas linhas...
Escrever é tornar-se mais livre e mais prisioneiro de si e das próprias palavras. É como colocar-se detrás de um espelho: você sabe que parte do reflexo é seu, mas outros olhos irão se refletir, se entregar e integrar suas palavras.
Escrever é um exercício de ser e não ser. É quando escrevo o que sinto, sinto o que escrevo ou apenas sinto com a imaginação, sem necessariamente usar o coração. Decerto que há um muito de coração em cada entrelinha, mas nem sempre os suspiros foram dados, o sangue derramado ou a vida seguiu desenfreada por onde gostaria.
Escrever, às vezes, tem gosto de confissão. Uma mea culpa. Em outras vezes é espelho de vaidade, dá muita vontade de saber-se lido. Em outras é vontade de ausência, de abandonar-se. É vontade de perder-se nas linhas e de nunca mais se achar, mas alguém vai lá e nos encontra. E nos chama de volta. E nos desembola daquele misto de palavras nossas e letras mortas que não queríamos desapegar.
Há exatamente um ano faço da escrita minha companhia. Divido-me em tantas outras. Algumas verdadeiras, outras nem tanto.
Em noites quentes sou de prosa, de aroma de rosas, de sentimentos tênues, de calores avassaladores. Em dias cinzas sou melancolia, desesperadamente angustiada na busca de cores para pintar os céus de um azul vertiginoso. Em dias brancos, sou como o papel e me desfaço em tinta, em letras, em desenhos, em poesia! Todo mundo tem seu dia de inspiração, seu dia de abrir o peito e declamar aos quatro ventos a sua oração.
Há um ano fiz das letras o meu mar e naveguei para dentro de mim e pela margem dos olhos de quem quisesse me ler.
Há um ano fiz das minhas palavras mais um porto: minha chegada e partida, cuja rota passava não só pelos meus cadernos e canetas, mas pela rede que permite infindáveis caminhos desconhecidos. Fiz de um blog uma válvula de escape e de uma revista meus três ou quatro parágrafos de fama, prontos para serem esquecidos no próximo clique.
Há um ano aprendi a gostar muito mais da arte de ser o que não sou através das tantas palavras que ordeno em fileiras de sentidos para mim, desfilando nexos nem sempre conexos para quem os lê.
Há um ano passei a integrar o grupo de colunistas da Revista Biografia e dezenas de textos depois, ainda fico angustiada com o próximo post, com a aprovação ou não dos editores. Há um ano eu, que só queria brincar com as palavras, faço delas minha séria diversão.
Há um ano eu só tenho a agradecer a cada novo texto o carinho que recebo de quem o lê, a dedicação e paciência dos editores da Revista Biografia e a gentileza e generosidade de todos que me escrevem de volta, dando suas impressões sobre as minhas linhas.

Há um ano, todas as semanas eu realizo um sonho antigo de brincar com as palavras sem maiores pretensões, deixando-as sair quase livres às pontas de meus dedos, inundadas de sentimentos sentidos ou inventados, mas sinceros.

domingo, 12 de janeiro de 2014

A Moura



A moura nascera diferente. O sol não lhe queimara a pele. Ao contrário, a lua a deixara láctea, com olhos de imensidão e desejos cadentes por estrelas.
Em noites frias que cobriam os seus próprios desertos, ela serenava como um rio sob a lua crescente e cheia de si permitia que seu olhar vagasse pelos jardins de seus oásis.
Em dias quentes bebia das fontes frescas de palavras que o vento lhe trazia em caravanas e mais caravanas de terras distantes. Cada um dos versos lhe soava como velhos conhecidos, linhas emaranhadas de caminhos percorridos por pés que nunca se cansavam.
Não era como os outros que conhecia. Não se contentava com os contos fabulosos de terras vizinhas. Fazia ela mesma suas histórias. Tecia, ela mesma, suas lendas, suas fábulas, seus contos e pagava a conta: o alto preço por ser ela e tantas outras ao mesmo tempo.
Dava-se ao luxo de acordar diferente todos os dias. Oscilava entre ser princesa, beduína, caravaneira, odalisca. Dispensava o ouro, pois brilhava com o sol; despia-se da seda, já que a pele reluzia com a lua; rasgava seus véus e emoldurava-se com seus cabelos.
Gostava de sentir-se livre. Gostava da sensação de ser uma ave-do-paraíso. Gostava de abrir os braços e sentir o vento enquanto dançava ao som de harpas. Por se sentir diferente, criava asas desejando alcançar as estrelas. Por não caber-se em si mesma, extravasava ao som da música.
A moura não tinha os cabelos negros como a noite e de Láyla, só o nome lhe coubera. A moura delicada como pétalas, pisava flores quando dançava e perfumava-se de rosas, embriagando o vento. A moura, leve, etérea, perdia-se na noite e na chama acesa que a iluminava nas madrugadas nas quais ela ousava ser mais ela do que poderia.
A moura de olhos de imensidão fitava o além das estrelas, buscando o sentido de sua vida, buscando o fio do destino, buscando os rumos de seus passos. A moura que escrevia as próprias histórias olhava para o céu infinito e mesmo sem compreender a razão de seus dias, tinha uma certeza: tudo aquilo já estava escrito. Maktub!

Desertos


Era tudo deserto. Era tudo imenso. Ela era pequenez, insegurança e querência: queria mais do que tudo um colo, um abraço, um afago – mais na alma que nos cabelos.
Como era grande o seu deserto. Tão grande que os olhos cansavam de buscar o limite. Tão grande que a boca desistia de pedir água. Tão largo que os pés não ousavam buscar um oásis.
Dos grãos de areia que a cercava, tirava a certeza de ser cada vez mais pó: destino irremediável de todos aqueles cujos corações batiam.
Dos grãos de areia, ela pensava em poeira: a poeira que (en)cobria tudo o que ela jogava para o seu porão: de quinquilharias a sentimentos, de roupas velhas a telefones amarelados.
Era grande o seu deserto e tudo era deserto. Sequer uma alma vagava pelas dunas. Sequer um caravaneiro, um beduíno de ideias envoltas em preto-e-branco-tradicional. Não desfilavam camelos. Oásis não brotavam com suas tamareiras. Nem de longe o dourado de um damasco poderia ser lembrado àquela imensidão sob seus pés que desafiava misturar-se com o céu, petulantemente azul, mas rasgado por raios tão laranja quanto quentes.
Tudo era deserto e ela perecia em sua paisagem. Sabia que as cores haviam sido escolhidas por ela. Sabia que as fontes haviam secado por suas próprias mãos. Se a alma era deserta, se vagava com o vento como companheiro era sua escolha. Ou pelo menos, era fruto de seus passos. Nem ela mesma se permitia atravessar.
Grande era aquele deserto. Grande era a porta pela qual ela havia passado sem se dar conta de que era um erro. Grande era a caminhada de volta, a jornada para fora de sua secura. Maior ainda era o esforço de virar, de fazer em si mesma o retorno. Grande era a falta de coragem e, por isso, a pequenez.
Por não se achar capaz de seguir sozinha, não dava nenhum passo e definhava sob o sol quente de seus verões intermináveis, mas desejosos de um outono mais calmo, fresco e confortável.
Era como uma criança: desejosa de mimos, mas seu mimo simples. Sua vontade era de braços, de abraços, de força para caminhar. Sentada à beira de si mesma, refletia sobre a vida. Sobre o que estava carregando consigo e deu-se conta de que não tinha bagagens. Ela era a sua própria bagagem.
Não havia fardo a carregar. Se não há malas pesadas, tudo o que se faz de dificuldades estava vindo de dentro para fora e era preciso desfazer-se de seus pesos mortos, das pedras que fora acumulando ao longo de seu caminho.
Desfazendo-se em pedaços, transformando-se em outra, seu deserto foi ficando mais ameno. Se as areias pelas quais percorria seus dias eram vastas, muito maior que elas era a vida e esta valia a pena se fosse um oásis.
A cada novo desprendimento, mais leveza, mais frescor, mais renovo e logo sentiu-se maior, mais forte, mas ainda menina. A cada nova abertura de si mesma novos horizontes e novos olhares e novas realidades e até paisagens.
Por ter aprendido que tudo é passageiro, encontrou em seu deserto um lugar não mais tão imenso, mas com limites bem definidos e necessário: um lugar de reflexões, de ponderações, de fortalecimento e, a partir de então, seu deserto passou a ser o colo que tanto buscava.

Ela fez de seu deserto o abraço que precisava para crescer e se entregava a ele como criança todas as vezes que a vida se mostrava difícil. E aprendeu a tirar de seu deserto a sua força.