Visitas da Dy

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Serpente



Era uma serpente, cheia de curvas,
Dona de veneno que entorpece, deixa a vista turva.
Deslizando sobre a cama,
Mais parecia lenha a alimentar uma chama.
Ornada com prata e batom,
Realizar desejos era seu dom.
Por entre travesseiros e sonhos pairava
Ignorando por completo que juízos desvaira.
E eu quando arrasto correntes, ela é cada um dos elos,
E se me atrevo poeta, ela está nos versos mais belos.
Ela é uma serpente e me tira o ar
É ímã que prende meu olhar.
Sou o alvo no qual a flecha de seus olhos crava,
Mas não me enxerga, a parva!
Não sabe a força que tem dentro de si
E repousa ali, mansa, delicada colibri.
Parece flor em manhã, orvalhada
Parece inocente, assim, deitada.
Talvez a seja, escultura branca, serva de Vestal
E seja apenas minha essa versão do pecado original.
Mas eu beijaria aqueles lábios vermelhos de maçã madura
E nenhuma pena (de Títio, Tântalo ou Sísifo) me seria dura,
Pois as dores sumiriam na lembrança pouca
Do dia em que experimentei aquela boca.


quinta-feira, 6 de abril de 2017

Sob o Mesmo Céu



(Céu de Juiz de Fora, com a crescente do mês de abril de 2017, gentilmente cedida por Saulo Otoni)

(Para ser lido ao som de Ora, de Ludovico Einaudi)



Foram semeados na terra,
Mas sonhavam altos azuis
De tons tão diferentes quanto se pudesse imaginar.
Parecia história de par:
(Ela claridade lívida, ele um quase mar)
Ela, mais lua que menina,
Naquela imensidão imergia.
Doava-se tanto e completamente
Que o plenilúnio era pouco, parecia descontente.
Como quem dança ao som de um piano,
Inquietava os juízos, rodopiando.
Refletida nas vitrines-olhos-retinas,
Experimentava em si o desfazer-se das rotinas.
Brilhava tanto e fielmente,
Que as estrelas, invejosas, eram cadentes.
Ele, melancolias celestes, siderais espaços,
Abria-se para ela desfilar seus passos.
Aclarava-se de azuis tranqüilos,
Aplacava turbilhões quase incontidos.
Eram dele os limites do mundo.
Cabia a ele ser largo e profundo.
E, embora soubesse ser tempestades e trovões,
Rasgava-se apenas para confessar emoções.
Ele era, então, inspiração e platéia atenta,
Era firme, pilar do tempo, mão que sustenta.
Mas sendo ela a lua que paira
E ele o céu inquieto que desvaira,
Couberam-lhes aflições tamanhas
Que não se evitam nem por barganhas.
Ela, de fases, sofreu
Ele, de manha, anoiteceu.
Como se fosse (im)possível um triste desenlace,
Como se histórias delineadas se quebrassem,
Fizeram-se solidões acompanhadas no mesmo tempo-espaço
Ele não abandonou seus azuis, mas tornou-se frio aço.
Ela não abandonou sua claridade, mas diminuiu-se.
Ele ainda a queria (por) bem e perto,
Mas ela não sabia encontrar o equilíbrio certo.
E quando insistiam em romper as agonias,
Ela lhe surgia, bailarina, adiantando o fim do dia.
Ele, descuidado ou insensato, revirava e revivia o passado
Ela, descuidada ou insensata, trazia o peito acelerado.
Parecia uma história de um par..
Da lua-leve-menina-bailarina e seu céu-azul-palco-mar,
Mas ela, que sempre era cheia de alegria
Misturava-se a ele, que a mordia:
Despedaçada, ainda era a mesma menina-contente,
Mas agora só a viam como a lua-crescente.
E ele, talvez de sentimentos parcos,

Não percebia que a deixava em cacos.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Insistência




Quero um cigarro, penso. Você não fuma, eu mesma me respondo. Droga! Não era pra ser um monólogo. Era pra ter alguém aqui, sentado ao meu lado ou na minha frente, tanto faz. Era pra ter alguém me aconselhando. Indicando um livro de auto ajuda ou esses romancezitos tipo best-sellers que vendem-se a milhares, todos com a mesma fórmula, mas eu dispensei todos.
Dispensei os muito amigos e aqueles que se dizem amigos. Aqueles que se dizem amores também. Beirando os quarenta e muitos anos a gente desacredita de tudo. Perde a fé. Menos naquela santinha ali, na cabeceira da cama. Bonita a imagem. Não lembro nem o nome. Mas é bonita. É tranquila. Lânguida.
Talvez eu acenda uma vela. Dizem que isso é bom. Pro anjo da guarda ou pra santinha ou pra iluminar a sala. De novo, tanto faz. Nem eu sei o que estou buscando. Desisti de entender as coisas. Principalmente as pessoas.
Esses universos paralelos que são os outros, quando nos tocam deixam mesmo à vista só o que lhes interessa, só o que lhes convêm. Mas não é um caso de culpa. E eu nem gosto dessa palavra. Eu também devo ser esse universo indecifrável. Esse livro de palavras cruzadas em que a gente tenta copiar a resposta do final, mas acaba desanimando no meio do caminho.
Outro dia li numa revista dessas aí que estou no meio da vida. Puta-que-pariu! No meio da vida! Caminhando para a melhor idade. Qual é mesmo a definição de melhor? Eu ainda não entendi bem. É uma sexta-feira à noite. Eu poderia sair. Beber uma cerveja num bar descolado, trocar uns telefones, não ligar amanhã. Podia ver gente, só pra ter o prazer de conversar com alguém desconhecido: enfrentar aquele tédio de se tentar adivinhar coisas sobre os outros, mas estou cansada. Estou preferindo ficar sozinha.
Tenho preguiça. Uma mórbida preguiça que talvez tenha contaminado meus sonhos. E foi ela quem me deixou aqui, feito essa estátua pousada nesse sofá que eu mesma escolhi a contra-gosto, porque não queria essa cor, mas era uma promoção. Veio esse mesmo.
Na verdade estou em casa esperando o telefone tocar. E eu sei, ele não vai tocar. E eu não vou dizer tudo o que gostaria, porque, se eu soubesse como fazer isso, seria um poema. Um, não. Vários. Um livro inteiro. Há tanta beleza nessa vida. Mas acho que ela me abandonou. Ou preciso trocar de óculos?
Ligo essa TV que pago a assinatura e desconheço bem mais do que noventa por cento dos canais que dizem ter. Lá fora o mundo está destroçado. E eu achando que a coisa que tinha explodido e feito-se em cacos era eu... Nada! É o mundo! Tudo um colapso! É confusão política, é falta de bom-senso, é corrupção e jornal que engana. É novela que sempre traz a mesma trama. Ninguém desconfia disso?
Não tenho mais quarenta e muitos anos. Devo ter mais de mil. Falta-me a paciência e a força de vontade de seguir em frente. Ouvi sirenes lá embaixo. Polícia ou ambulância, tanto faz. Amanhã sai no jornal o que foi. Aqui no meu sacrossanto lar nada aconteceu. Não preciso me preocupar. Verifiquei todas as trancas, portas e janelas. Estou livre dentro da gaiola que me disseram ser um lar. Só eu me sufoco com a ausência do ar?
Tumulto no filme. O ser humano gosta de uma balbúrdia. Quanto mais crueldade mais audiência, mas é coisa mesmo só de cinema, TV, sei lá. Na manifestação que passou a pouco, levantavam patos de borracha. No eu tempo a única borracha que eu via na manifestação era das balas de borracha. Estamos embrutecendo. Virando um monte de nada sem sentido.
E eu estou aqui, praticamente sem fé em nada, olhando pra imagem da santinha. Uma baita vontade de desistir. Uma baita vontade de abrir essa janela e gritar ou pular, mas eu nem vou voar. Tenho uma amiga que me mandaria pro terapeuta se me ouvisse agora. Os outros ofereceriam o remedinho da moda. Eu, não. Eu só vou fazer o que sei fazer  de melhor até agora nesse quase meio século de vida: um drama básico, culpa da lua em câncer ou capricórnio ou sei lá em quem. 

Ah, e também vou continuar sendo teimosa e não vou abandonar essa coisa morna que estão chamando de vida. Perdi a fé. Um pouco de paciência. Perdi a motivação, não a coragem. E, além de tudo, ainda tenho um gosto pelo (auto) sofrimento, por essa melancolia que vai me acompanhar da hora que acordo até eu me deitar. Não vou fazer nada demais. Vou insistir nessa tal vida. Tentar destruir o que me destrói. Ou a mim mesma. Como diria um livro que li por aí, “tem coisa mais autodestrutiva do que continuar sem fé nenhuma”?

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Mabon



*Mabon: celebração celta do Equinócio de Outono, no Hemisfério Sul

Sopra o vento que embaraça o cabelo dela,
Envolta na lógica da ventania
Que desrespeita as faíscas que lhe saltam:
São lampejos de seus pensamentos.
E ainda assim, desregrada, é linda!
É um quadro sem margens:
Desconhece os limites sufocantes.
E ainda assim, ela ousa pousar nas margens,
Nas minhas bordas, nas minhas eiras.
Desafia minhas temporalidades,
Questiona minhas identidades.
E se veste como quem nunca está nem aí.
Como quem nunca está nem aqui,
Como quem ignora as estações.
Mas ela é aquela tarde outonal iluminada:
É aquele balanço da folha caindo.
É o passo cadente de onda do mar.
É cheiro de mato e orvalho pela manhã.
Ela é a visão que tenho na noite
(Que é do mesmo tamanho que o dia):
É o desejo de fogueira de Mabon!
É a mulher que se despe e se veste de névoa
É o anúncio das flores caídas,
Das promessas não cumpridas,
Das noites mal dormidas.
Ela é o arranjo das flores semimortas que ganhou
E o perfume que sozinha exalou.
Ela é colheita e semeadura
E mesmo vestida de lua
Ainda conserva uma armadura:
Não se arrepende das podas pelas quais passou,

E ainda reflete levezas, mas não esconde suas dores.