Visitas da Dy

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Bloco de Notas




Tomo a vida como um grande bloco de papel. Tenho folhas em branco, um lápis e uma borracha.
Algumas vezes posso apagar os erros. Outras, prefiro só dar um traço por cima e seguir adiante. Não raras são as vezes em que percebo que a falha está lá atrás, de modo que não a posso apagar e sigo.
O fato é que, todas as manhãs tenho novas oportunidades para me reescrever, me reinventar e, disso tudo, sobra-me o direito do uso e do abuso do que tenho em mãos: meus lápis e borracha.
É muito mais simples que eu me permita a fixidez das rotinas e do cotidiano acinzentado do grafite: seguir o fluxo é sempre menos cansativo, menos exigente, menos arriscado e até mais confortável. Lamentável essa comodidade, mas é uma possibilidade.
Ao contrário, posso ser mais. Posso ousar. Posso escrever as minhas linhas e ilustra-las. Posso valer-me de outros tantos lápis, outras tantas cores e formas e deixar tudo muito diferente. Há riscos. Há erros. Há contornos que não são fáceis de se fazer. Há nuances muito sutis que nem sempre percebo, mas são essas possibilidades que mais me encantam diante da vida: o inesperado.
Uso o dia como meu laboratório de criação: escrevo, pinto, bordo, rimo e canto. Falho e apago. Falho e me afago, lambendo feridas, mas orgulhosamente, assumindo os erros em vez de apagá-los. Tudo isso depende muito: da fase da lua, da enchente das marés, das batidas de meu coração.
E faço do coração meu tinteiro preferido: dessa tinta não há voltas. Não há como apagar. Tudo o que se traça marca a pele e a alma. Tudo finda, nada se esquece. É do coração que sai a tinta-inspiração mais forte. É dele que saem meus croquis mais apaixonados, os versos mais encarnados.
Mas ainda reservo-me à tinta-razão, à tinta-planejamento, aquela que queima horas a fio em hipóteses e ensaios vãos. Vãos... justamente aqueles espaços entre o tempo e a ação que não ouso atravessar e perco tudo o que foi pensado. Aqueles traços que esboço e volto apagando por um motivo ou outro. E uso minha ferramenta mais desprezada: a borracha.
Valho-me da borracha só para reparos essenciais. Cabe a ela o alívio dos perdões, o novo suspiro de quem se sufocava com a mágoa. A devolução da tranquilidade, da noite de sono, da paz de espírito. Borracha-alívio, borracha-salvação.
Permito-me erros porque sou humana. Permito-me os erros porque tenho limites que não são intransponíveis e, sendo responsável pela criação do meu roteiro de vida, não posso enganar-me que tocarei a perfeição.

Munida de meus lápis e borracha e tendo a vida como bloco de notas, como bloco de papel à minha disposição, assumo a responsabilidade pela história que escrevo (dessa vida), mas reconheço que se a borracha ameaça a acabar antes do lápis é um sinal de que estou passando dos limites. Que me venham as reflexões!

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Há Mar




Pode alguém rodear-se de pessoas,
Atravessar anos a fio entre ruas e avenidas
E não experimentar o que é o amar?
Posso eu jogar-me nessa imensidão noturna,
Recitando versos que escrevi,
Bebendo espumas de sonhos
E não experimentar o que é o mar?
Já creio que não.
Porque sei que há mar
E o que é amar.
Já tenho debaixo dos pés os caminhos que preciso
E todos me conduzem para a calmaria que desejo.
Isto posto, resta-me a espera:
Que tudo o que me assombra se desfaça,
Que todo desamar, que me desarma, seja diluído.
Que o amargor matinal venha com o café
E seja adoçado pelos versos de meus lábios.
Que todo mal-amar não caiba nas malas
E fique pela estrada.
Sou como todos: um ser amoroso.
De um amoroso silêncio,
Às vezes, doloroso esquecimento,
Noutras tantas, barulhenta euforia,
Impulsos indomados de quem já conheceu
O amar, o mar
E não sabe bem onde quer chegar
Mas abstém-se de não tentar.



Longitudes




Fiz barcos de papel
Dos planos que me deu.
Coloquei-os nas correntezas
Dos rios que pranteei.
Das estradas que andamos
Guardei as nuvens que contei.
Dos mapas que cruzamos,
Longitudes...
Tão longe as atitudes...
Tão longe quanto meus sonhos
Tão longe quanto seu nome e o meu.
Não é tristeza o que me sobra
São flores
Que jogo às margens dos rios
Sacras como preces
Livres como o vento
Efêmeras como fomos

(Sopro de Chronos)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Menina dos Olhos Castanhos






Os olhos são os céus dos homens.
Por eles as claridades das manhã de domingo
Deixam à mostra nossas alegrias.
Há ainda nuvens leves, chuva de verão,
Que molham nossos sonhos,
Adubam a terra coração
E as pessoas-sementes florescem.
Deve ser coisa dessas gotas de amor...
Há, porém, nuvens densas, cinza-cumbo-derretido
Que fazem cristais despencarem dos olhos.
A linha d'água perde o horizonte,
O Oriente, o rumo, o prumo, o limite do consciente.
Para essas nuvens, os olhos são reféns
De tudo o que se sente e não se pode esconder.
Denunciam nossas agonias, dores e tudo o mais.
Falam até o que não deveriam.
Ah, olhos-céus-castanhos...
Chovem o que eu não gostaria de ver,
Não gostaria de sentir, não gostaria de ser.
Olhos de tempestade em linha d'água...
Olhos de chuva que deveria ser passageira, mas fica
Olhos de teimosia quase encantada.
Olhos que transbordam um inferno e uma paz
Que habitam em mim e não me cabem
Porque sou de uma profundidade rasa nesses olhos.
Eu, que sou menina dos olhos castanhos,
Quase me afogo em água e sal e chuva.

Sentímetro



Senti
A metro
Que o sentimento
Não poderia ser medido
Se não por uma unidade inventada
Dessas quase mágicas, quase loucas
Que só computassem batidas eufóricas
E esquecesse todas as dores:
Coração que bate
Esquece que apanhou
Mede-se em sentímetros
A tal fita métrica de amor!




sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Entre Moiras e Clio, A Filha da Noite



Já estava acostumada à insônia. De tanto não dormir, acostumara-se a usar a madrugada como seu tempo-espaço próprio para pensar.
O sono já se configurava em seu inimigo. Uma completa perda de tempo. Aquela semimorte em que o corpo se entregava já deixara de ser necessária para ser irritante e quase desnecessária.
Quantos planos, quantas confabulações não deixariam de ser feitas em uma noite de sono profundo? Não! Dormir não era tão essencial. Pensar é que era!
Ao ler em algum lugar que ao final da vida pouco mais de um terço dos nossos dias seriam desperdiçados nos braços de Morpheu, desesperava-se. Gostava da praticidade e das urgências. Perder-se em mundos oníricos não era para ela.
Quanta vida pulsava nas veias da madrugada! Quantos mundos a serem descobertos! Quantos noturnos não nasceram das horas mais escuras, mais solitárias! Quantos sons não foram criados só para romper com aqueles silêncios ensurdecedores que só a noite sabe reproduzir!
E os amores? Quantos haviam sido desfeitos e outros tantos nasceram. Quantos gritos abafados pelos travesseiros ou pelas mãos que preferiam desabafar em notas harmônicas ou em versos ritmados. Quantas musas inspiradoras repousavam enquanto o observador fiel descrevia seus traços em mármores e telas encharcadas de tintas.
Ela era um ser da noite. Uma coruja, um gato pardo solitário, uma mariposa dessas de luzes corriqueiras, de ruas sem charme, sem passos em prumo. Sentia-se como um daqueles caderninhos de segredos que só são destrancados nas penumbras, que se fazem em confissão e selam preces para que ninguém as revele até que percam o sentido.
Era na noite que sentia que tinha veias, membros, que tudo pulsava. A poesia lhe jorrava como se houvesse um corte no pulso que não estacava, mas que também não lhe mataria de nenhuma verborragia. Ao contrário, lhe daria muito mais vida.
Cabia à noite organizar aquele desfile de ideias e imagens, que ao mesmo tempo em que deixava a moça inquieta, trazia paz, uma paz de espírito que poucos entendiam, porque ainda acreditavam no sono.
Para ela, o sono não era salvação, talvez adiamento, e isso não a agradava. Gostava de soluções, de tudo esclarecido na primeira hora, de quitações à vista de todos e sem prazos, sem postergações.
Distanciava-se um pouco do presente à noite. Era uma espécie de pausa entre o ser e o estar que ela gostava de experimentar e, às vezes na janela, contava as brasas das pontas dos cigarros que teimavam em cair de outras janelas ou olhava para as estrelas tentando entender as constelações.
Tinha a necessidade de perder-se nessa fenda de tempo-e-espaço (andurriais), onde encontrava sua inspiração, seu presente, escrevia seus enigmas e perdia suas preces no cansaço de tantas pessoas.
Sentia-se livre na noite. Sentia-se parte dela, intrínseca. Sentia-se parte daquele infinito de escuridões e iluminações paradoxais que sua alma experimentava enquanto velava o sono da maior parte da cidade. Sentia-se dona daquele tempo quase estanque que a cercava nas madrugadas.
Deslocava os ponteiros do relógio com a ponta dos próprios dedos, entre as Moiras e Clio, escrevendo histórias, traçando destinos, olhando o passado, respirando o presente, vendo o sol quase a conta-gotas, levantar-se de algum lugar onde já se escondera também um arco-íris, pouco importando se se tratava de um mar ou uma montanha.

Desfazia-se em paixão nas noites. E as estrelas lhe davam a leveza necessária para que pudesse se desprender das utopias ao raiar do novo dia e um chá lhe renovava as forças para o despertar do mundo, porque o dela acontecia toda vez que a noite caia.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Quimeras




Poderia acreditar em tudo e em qualquer coisa.
Poderia acreditar que estava escrito. Reduzir todo um mundo de possibilidades em  um único verbo como os árabes. Algo com requintes cruéis de uma imutabilidade que sugeria uma aceitação, quase um fatalismo, mas que com boa dose de romantismo e poesia, soaria bonito.
Poderia acreditar em seus sonhos com desconhecidos como se fossem presságios. Poderia esperar encontrá-los a cada esquina e que os convites para dois dedos de prosa fossem se realizar e que dali sairiam amizades duradouras.
Poderia acreditar em trajetórias de vidas passadas. Almas que estão predestinadas a viverem juntas para sempre. Que se encontrariam de qualquer maneira, que se completavam.
Poderia acreditar nos anúncios de jornal que garantiam a satisfação, nas promessas de empréstimos a juros baixos, no Coelhinho da Páscoa e no Papai Noel.
Poderia. Mas não acreditava. Olhando a foto que ainda teimava em guardar na gaveta, lembrou-se de como tinha sido até chegar naquele momento congelado. Gostava de fotografias – reveladas – porque tinha exatamente essa sensação de perpetuação. O tempo ali, parado, capturado, pronto para ser revisto – quase revivido – a hora que ela quisesse.
Ainda ouvia os sons daquele dia quando fechava os olhos. Os sorrisos soltos pareciam dançar. As mãos pareciam ter a certeza do trajeto que fariam. Fosse um quadro, teria a certeza de que fora pintado de propósito, com todos os detalhes calculados. Mas era uma fotografia. E ela quase ousava dizer que seria um esboço de perfeição.
Talvez fossem aqueles três segundos quase mágicos que todos vivem um dia e poucos sabem. Ela só sabia agora, muito tempo depois e o contemplava quase devota.
Sacudiu a cabeça, afastou para longe o som dos pássaros e das vozes que estavam ao redor naquele momento quase mágico. Espantou aquela música que escolheu como trilha sonora e voltou-se para a gaveta.
Havia na gaveta uma bagunça típica de gavetas onde se guarda de tudo. Ali não era um lugar exclusivo para suas fotos ou lembranças, mas um amontoado de tudo. Era quase o seu próprio refúgio. Suas relíquias a compunham e a davam um ar quase medieval quando olhava tudo aquilo com certa devoção (tão ardente quanto quando olhava para a foto).
Em pedaços de papel, poemas. Amores, um adeus, cacos, desenhos, beijos, cheiros, abraços, incensos, origamis, lágrimas. Tudo embrulhado em lembranças. Tocava cada objeto e sorvia deles saudades que eram semeadas em seu peito e floresciam pelos olhos, que, generosos, vertiam cristais-flor.
A gaveta era um mundo. Era ela no mundo, eram seus planos. Suas quimeras desfeitas, atropeladas pelo tempo. Eram os motivos pelos quais ela poderia ter ficado ou partido, eram suas dúvidas, suas dívidas consigo mesma. A gaveta era uma prisão em que ela sentia prazer de ficar.
Ainda relembrava exatamente o som das palavras escritas sugerindo passados ancestrais. Ainda sentia o perfume em sua cabeceira, de Orientes que desejava tocar e outros que desejava traçar.
Dentro da gaveta guardava suas dores que a faziam contorcer-se depois da fuga de uma decisão difícil. Guardava preces não feitas, interrompidas pelo sono ou abandonadas por julgar que não merecia mais o que pedia.
Dourava pílulas que agora engolia. Guardava suas desistências, seus desânimos, alguns fricotes, alguns dias menos coloridos e os multicoloridos. Guardava a música favorita, o primeiro poema, o anel perdido, o recorte de revista.

A gaveta era um tesouro, era ela. Era onde se encontrava e se perdia para se reencontrar e revi(vi)a a vi(d)a que escolhera, como se fosse plateia de si mesma, escritora de seu roteiro, criatura-criadora, ser viv-ente, que como todos os outros que conhecia, precisava aprender a (res)guardar-se de vez em quando. Por isso escolhera a gaveta como seu mundo paralelo.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Eternidades



Fim de tarde. Início de noite. Esses limiares nunca foram muito bem entendidos ou definidos por ela. Também nunca foram respeitados, como as horas. Ah, e quantas horas ela já não tinha perdido! Não conseguia fazer as pazes com o relógio.
Nos últimos dias já não conseguia fazer as pazes com o tempo, que gritava meio rouco em seu ouvido, dizendo que passa acelerado e sem pedir permissão. Esse tempo que mastiga planos, que não espera um novo amanhecer, que é implacável e quase cruel.
Ela não aceitava o tempo-medida, sem medida certa para as pessoas. E talvez até para ela mesma. Era uma não-aceitação fundamentada especialmente no que não entendia: o tempo, às vezes, era generoso às avessas. Deixava-se levar por quem parecia não o merecer e se extinguia daquelas pessoas que deveriam merecer a eternidade.
Tão difícil pensar que se poderia julgar quem merece ou não mais tempo. Mas ela, agora, pensava que tinha essa função. Mentalmente fez uma lista de quem poderia ter as horas extintas e quem deveria, por sorte, ter algum acréscimo de vida. Politicamente correta, pensou em eliminar do mapa as pessoas más, que promoviam guerras, fomes e toda sorte de mazelas. Muito tendenciosa, doaria tempo àqueles a quem amava e a rodeava.
Tola demais! Gastou seu tempo e sua energia em empreitada já fadada ao fracasso. Mas era uma tentativa de acalmar seu coração agalopado pela consciência do fim de tudo e todos.
Sentia muito. Vivia à flor da pele. Apesar de não ser uma mulher alta, em sua mediana estatura cabia um coração largo, amplo, com bastante espaço para o amor. E cultivava esse amor como o jardineiro cuida de uma flor rara, com atenção, dedicação, sinceridade.
Muitas vezes ela se permitia a pensar em como era sentir tanto. Chegava a pensar que sentia mais que os outros. Mas se convencia que amor não se mede. E para aliviar, só sorria.
Em finais de tarde ou início de noite como aquele em que se experimentava as quatro estações do ano em um único dia, ela se permitia sentir um pouco mais e mais, permitia-se mostrar tudo o que lhe agitava o peito e, se não falava, escrevia, se não escrevia, chorava.
Depois que o céu desabotoou as suas nuvens e a chuva renovou tantas esperanças enquanto escorria pelas escadas e calçadas das ruas que ela passava, tomou um bocado da água nas mãos. Fez poça d’água, lago transparente afogando a sua linha da vida. Tinha na palma das mãos um novo aprendizado: seremos afogados pelas águas do tempo. Teremos nossas linhas da vida, do amor, do sucesso, paralelas, retas ou curvas, todas afogadas, aos poucos apagadas, esquecidas.
Naquele dia, ela experimentava, em si mesma, as medidas dos amores que carregava. Experimentava o que era escolher quem levar pelos seus dias afora e teve a certeza de que a-m-a-v-a.
Ela amava. Isso era o que sabia e o que as palavras não diziam. Poderia se esforçar procurando em todo o dicionário e não encontraria em todo o léxico algo que a expressasse.
Ela chorou. Feito criança perdida. Feito um desconsolo. Até soluçar, não se importando com onde estava, com quem a olhava, com nada mais além do que sentia. E o céu desabou mais uma vez, em chuva fria, cristais transparentes anunciados pelas vozes dos trovões, talvez em solidariedade, talvez para misturar-se às lágrimas dela e mostrar que, mesmo que parecesse, não estava sozinha.
Poderia ter sido, talvez, só uma coincidência ou um capricho de Deus, mas por um segundo pensou que o céu chorava com ela, arrependendo-se de ser a morada de pessoas que mereciam mais tempo ou alegrando-se por receber preces que seriam atendidas. Ela já não sabia muito bem o que pensar do céu. E nem queria pensar nisso. Agora, só chorava.
Aquelas lágrimas já tinham sido contidas, mas fizeram-se queda livre da nascente castanha que observava tudo e pouco falava, sofrendo da falta de palavras que sequer lhe era habitual. Ela chorou e lavou a alma e descobriu que o amor é saber-se finitamente infinito, voltou a crer no impossível, renovou a fé e sorriu.

Descobriu que o tempo sempre é suficiente. Os olhos é que não o sabem sentir. As mãos é que não o sabem transformar. As pessoas é que não o sabem compreender e aproveitar. É que essas coisas de eternidade não se medem no relógio ou no calendário, só se sentem.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Protocolos







Chega de meras formalidades sociais. Basta de tantos protocolos. A mim, interessam as espontaneidades. Ou oferece-me o que se tem de melhor, os sorrisos e as conversas sem rumo, ou não interrompa meus silêncios.
Quanto aos seus silêncios, colecione-os como quiser ou como puder: cada um que se aguente, que tolere as próprias manias, mas não queira estender a mim as práticas típicas de repartições monótonas. Não tenho vocação para nada do que é repetitivo.
Se as palavras que foram pensadas e levadas à ponta da língua não se adaptam aos olhos nos olhos, e são engolidas à seco, que nem se atrevam ao toque da ponta dos dedos. Meus ouvidos não interpretam o som sem ritmo das teclas que pautam as conversas de hoje. E meus olhos não distinguem muito bem as nuances que poderiam ser ouvidas.
Tenho problemas de adequação a essa preguiça que assola seus dias e impede cafés e cheiros. Ainda prefiro as correrias de abraços furtivos e beijos roubados, displicentes, mas presentes. Perpétuos lampejos na memória de quem sabe o que quer ou descobriu-se no meio do caminho.
Defendo-me dessa carranca que não vejo, mas pressinto, que acompanha aquele típico “a gente se vê” que nunca se permite acontecer. Uso um patuá infalível para esses maus agouros em forma de pressa: chama-se compromisso. Ouso marcar e cumprir, espantando toda a sorte de azar-o-de-quem-não-veio. Tenho palavra.
Gosto da palavra como se ela fosse parte minha. Extensão minha. Documento meu. Mais sagrados que o Livro. Honraria de maior grau que não distribuo gratuitamente por reconhecer o seu valor, que resgato quando a lanço refém de meus desejos e promessas.
Afasto-me de ataques de cinismos e ironias pobres, fantasiadas como pierrô entristecido. Sou, ao contrário, a Colombina brincalhona que se diverte com outras figuras – de linguagens – e escorrega nas entrelinhas tão claras quanto suas assertivas.
Cansa-me toda essa embromação contemporânea dos desinteresses nossos de cada dia. Prefiro, a despeito desse enrolo, desfiar minhas horas com a poesia. Ganho mais, cultivo harmonia.
A quem não sabe dizer um não ou cala sem certeza, lamento os momentos de recaídas. Não bastarão. Não soarão diferentes do que são: meros protocolos das vontades não sabidas, escondidas, contidas, mal resolvidas ou inventadas. Nenhuma intervenção as salvará. Nenhum meio de campo mudará aquela primeira impressão mecânica que se fez.
Teço paciência com fios de silêncio só até quando me convém. E, convenhamos, o tic-tac do relógio cobra a sua conta muito mais rápido do que parece e logo o tal silêncio vira tédio e a paciência se esvai.

Felizmente tenho rompantes de euforia que espantam toda a monotonia e me relembram que não gosto dos protocolos. E os devolvo a você, no mesmo endereço, para não errar o destinatário. Que se procure outra repartição. Aqui comigo nada é repartido. Tudo é por inteiro.