Visitas da Dy

sábado, 23 de agosto de 2014

Escriba




Encantada. É assim que fico diante de você.
Espero pacientemente que durma, que se entregue ao descanso diário e necessário para que eu possa me despertar enquanto lhe observo.
Perco-me na doçura de seus olhos fechados, que quase nada viram do mundo e lamento pelos meus próprios olhos que tão pouco viram e que se enchem e se satisfazem com a sua visão.
Admirada, sinto-me deusa pagã de tempos antigos. Sinto-me aquela a quem prestam homenagens, mas nunca alcançam e que por mais que fosse amada, jamais chegou a ser entendida.
Enquanto dorme, eu-deusa, tenho pauras de endoidecer. Tenho desejos de lhe (d)escrever  e sinto-me incapaz de dominar as letras indolentes. Mas como deusa do seu amor não precisaria dominar essas letras que acabam por ser tão frias. E volto a ver-me como mulher. A mulher que se desmancha diante dos olhos fechados do amado.
Eu, mulher-desmanchada-de-adimirar-lhe-o-descanso, percebo-me mais que uma deusa, mais que simples mulher. Vou além daquelas que passaram. Vou além daquelas que apenas existem. Vou além daquelas que tentam chamar a atenção e despertar-lhe os desejos, porque eles já são meus.
Coube-me guardar o seu repouso, os seus sonhos, o seu sossego e como prêmio ganhei a descoberta de meu dom. O mesmo dos escribas. A função nobre de me perder em palavras e só me encontrar tecendo linhas sobre você, sobre o que vejo.
Tudo o que os deuses antigos não souberam ou não puderam restou de herança aos poetas que, corajosos, se despem vestindo de versos. E eu uso as palavras como vestido. Em noites de galas, redondilhas. Em dias comuns virtuosismos.
Pouco importa de onde saem, para onde vão, como foram feitos. O que me vale é a inspiração. É o momento em que meus olhos pousam sobre você e param estáticos, invejando o silêncio que o envolve e o ar que lhe dá a vida.
Cabe-me ser escriba do que sinto, do que penso sentir, do que sentirei e daquilo que jamais experimentarei. Cabe-me ser poeta, domadora de rimas, descobridora de léxicos, que faço para brindar-lhe com meu vinho mais encorpado, mais saboroso, de embriagar sem tirar o juízo, de saciar sem acabar com a sede para ser repetido.
Cabe-me ser maior que a vida e a morte e as suas pelejas, ser poesia, ser voz ouvia em milhares de anos, canto nunca silenciado. Cabe-me encher as taças e erguer brindes e entoar canções.
Cabe-me preservar o dom milenar de quem dominou a pena. Escriba. Jardineira de rimas, que cria flores em versos e deixa se ler em reversos. Semear perfumes de antigamente em corações sedentos de hoje e de gotas de amanhã-de-manhã, dando vida para as vidas que virão e alento para as que aqui estão.

Encanto-me com o seu silencioso adormecer e sinto-me engrandecida e feliz por descobrir-me pelos seus olhos, ainda que fechados, ainda que inconscientes do despertar que me causam. E escrevo. E quando o sono vem, repouso feliz, com mais um verso pronto, pousando-lhe nos lábios um beijo de agradecimento e sinceridade. Sussurrando-lhe meu nome e novas promessas de um dia bom.

Passagens




Amo as chuvas.
Caminho na lua.
Tem dias – e noites –
Que conto estrelas.
Em outros tantos,
Descanso nas nuvens.
Amo o dia com o seu clarão.
Sua verve que me salta em poesia.
Amo o passar das horas
E os seus pés

Que o faz passar por mim.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Rascunhos



Há muito tempo guardo rascunhos. Pensamentos fragmentados que surgem em um sobressalto e que pousam no papel à espera de uma atenção que nunca terão.
Os pequenos fragmentos são visitados todos os dias para ganhar novos acréscimos, mas nenhum dele é lido. Vou tecendo, assim, com palavras, uma espécie de colcha de retalhos infinita, fada ao esquecimento. Imersa na indiferença que eu mesma crio.
Sou uma sabotadora de ideias, das minhas ideias. De planos. De versos que poderiam ser tão bonitos quanto um Neruda ou um Pessoa, não por pretensão ou talento, mas por vocação: toda palavra tem vocação a ser doce, suave, tocante.
Quando vejo os traços mal feitos com as palavras que anotei correndo para não esquecer uma voz me diz: deixe estar um dia você as lerá. E outra, mais maldosa e, talvez, mais realista gargalha: lá vem você com mais palavras que não quer esquecer e que nem quer ler!
Isso basta para lançar-me a angústia quase fatal que é conviver ao mesmo tempo com uma esperança e uma contra-esperança que não se abandonam.
Muitas palavras nasceram em bordas de xícaras de café e por ali mesmo se afogaram. Alguns rascunhos vieram no vento como dente de leão desvairado e injustamente aprisionado no papel.
Dou-me conta do quão injusta sou com meus pensamentos. O quão cruel sou eu que os aprisiono em um caderno nem tanto secreto, nem tanto invisível, nem tanto inacessível, mas que é evitado cotidianamente. E lamento por tudo aquilo que foi pensado, escrito e nunca lido.
Encaro as palavras mudas diante de ouvidos atentos e percebo a imensidão que elas poderiam alcançar se pudesse voar com suas próprias asas, se pudessem ser livres em suas tantas reticências, longe dos mal entendidos dos pontos-e-vírgulas.
Doou-me conta de que tenho ouvidos surdos diante de palavras que me gritam e finjo não as ver, mesmo quando as tateio. E sinto o quanto elas são carentes de movimento próprio. Percebo o quanto o deslocamento das ideias é importante.
Faço os meus rascunhos com a seriedade de quem chegará até o projeto final, mas os abandono como criança mimada com brinquedo novo, na caixa, que despreza o recém-chegado anterior.
Percebo que as linhas em que guardo minhas palavras são ninhos, que aconchegam meus pequenos pássaros cativos, meus rascunhos, que são desejosos de céus abertos para crescerem e deixarem de ser tão miúdos. Percebo um antes e um depois mais aflito do que deveria ser por mero capricho meu em não dar a liberdade tão almejada pelas palavras que fingi ter libertado pela tinta da caneta.

Talvez os rascunhos sejam braços abertos, carentes de outros braços que os permitam se entrelaçar e se fortalecer e pelos quais eu mesma encontraria mais firmeza. Talvez os rascunhos devessem ser revisitados e relidos e transformados em projetos finais. Só para alívio. 

Rotina de Escrita



Falta-me a rotina. Na verdade abdiquei dela.
Não é possível que eu pare todos os dias ao mesmo horário à frente da caneta e do papel e lance sobre eles as palavras. Escrever não é só isso. Escrever é revelar-se aos poucos tanto e quase nada nas folhas em branco. Mancha-las com minhas histórias, esboçar os sonhos, borrar com as lágrimas.
Não tenho hora para escrever. Não tenho hora pra me reconhecer. Se o faço no banho ou no passeio pela praça, na fila do banco ou na hora do almoço é só uma descoberta minha. E as ideias vêm. E a caneta faz-se arma e fere o papel.
Que me descubro olhando no espelho é fato, mas nem sempre aceito a exposição que vejo. Nem sempre quero repeti-la no papel. Nem sempre quero mostrar-me para além de meus olhos. Às vezes os olhares curiosos não me apetecem e eu os dispenso.
Tenho muitos versos que me são soprados no ouvido pelo vento. Alguns decoro. Outros tantos escrevo. Na maioria das vezes nem relendo eu os reconheço e me emociono com o que está ali. E penso em como o autor me leu e me escreveu. E era eu. Ou era outro. Poeta é assim: lê a alma dos outros. Ou as almas são todas iguais e a gente é que finge que não?
Às vezes brinco de poeta. E fujo da rotina. Escrever é o milagre do que se sente com o que se deixa perceber. E só. Desfio a madrugada em versos que nem em sonho faria. Às vezes conto as gotas das chuvas frias em contos sem fim.
Escrever é brincadeira de criança que só se faz depois de grande. É construir abstrações concretas. É seguir fielmente a rotina da qual se corre, mas que se torna um alívio sagrado para quem se sente transbordante de informações, de palavras, de sentimentos.
Escrever é a rotina que deságua sobre as horas improváveis e da qual corremos como o rio em direção ao mar. É madrugada desperta, tarde sonolenta, boemia no sofá da própria sala, preguiça de parar. É a ação inevitável de alma que precisa e quer se salvar das agonias que bebe todos os dias.
Escrever é ter a sensação de voltar no tempo e mexer no relógio, fingindo não estar atrasada mesmo quando o despertador não toca, quando o ônibus não passa ou o sinal não abre.
Escrever é a rotina dos meus dedos cansados que varam a madrugada como se estivessem sendo recarregados e descarregados dos vários humores que viveram nas horas diurnas e que só parecem ter o seu alento quando a hora é mais escura.
A rotina de se escrever é mesmo não ter uma rotina. É ser livre. É criar brechas nos dias, como quem abre uma entrelinha, um parênteses no meio das obrigações.
Não escrevo por rotina, nem tenho uma rotina de escrita, mas asseguro que as letras são minha âncora em mar bravio, minhas asas em céus violeta, meu refúgio a cada madrugada.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Transeunte



Se eu pudesse escolher uma palavra que me definisse, essa seria: transeunte.
A escolha se dá pela consciência de que tudo passa e de que eu passo por tudo: pelas horas enfileiradas, pelas sensações indescritíveis e abstratas.
Sou transeunte de mim mesma, em mim mesma. Transito pelo corpo que vai crescendo, que é formoso e que decairá. Transito por minhas lembranças, vivas, irradiantes, que vão esmorecer e um dia se apagarão.
Não pertenço a nada e não poderei desejar nada que faça ficar em nenhum lugar, porque a vida é movimento e se o é, que a estrada caminhe sob meus pés.
Não sou e nem serei nada, uma vez que logo desfarei minha existência em pó, tão seco e leve como as areias do deserto. Tão facilmente carregado pelo vento que o mundo será pequeno.
Por ser transeunte, passante, não me restam lamentos de horas tristes e nem grandes comemorações para as horas felizes. Passo por elas como quem anda em um corredor de uma galeria de obras de arte: pouco se sabe do autor, mas admira-se a beleza, a dor ou a potencial alegria, mas jamais se fixa naquele momento, naquele lugar. Precisamos passar. Para que outros possam vir. Para que novidades se descortinem.
A certa altura pouco importa para onde vou, apenas o ato de ir me é lícito e válido e merece o reconhecimento. É como nasci, passando de minha mãe para o mundo, é como terminarei, passando do mundo para o descanso eterno, se assim o merecer.
Transeunte. Passante. Ser que caminha. Pés que andam e pouco param. Pessoa que aprendeu a amar as partidas com a mesma intensidade das chegadas e que acha as despedidas tão nobres quanto as boas-vindas.

Eis que sou caminhante da vida e que me perdendo nos caminhos, crio novos atalhos e me acho. Eis que me acho definida: transeunte.

Prometheus



Cabe a mim padecer no todos os dias no mesmo lugar. Cabe a mim ser vedado à calmaria, ao descanso, ao suspiro de alegria, ao leve balançar das mãos livres.
Coube a mim as correntes, a condenação, a punição sob o céu que conheci, que admirei e que por vontade própria ousei dividir s segredos.
Eu que só quis o bem daqueles que precisavam de fogo, doei a centelha divina que abriu-lhes as veias para o sangue correr aquecido. Eu que me recuso a crer que cometi um engano, recebo diárias penas e arrasto minhas correntes.
Eu, que de semideus, sou tão humano, que pelos homens nutri apreço e sacrifiquei a liberdade de meus passos pela imensidão pelos limites de estar acorrentado.
Eu que teimei com Zeus, com o deus, que cri no homem e na sua capacidade de amar, não fui merecedor do perdão divino, mas sim das penas. Duras penas que me voam e comem por dentro. Que me esperam anoitecer e refazer para me revisitarem e retornarem os castigos.
Eu que nu moro no alto Cáucaso posso ver os homens que mais amei, mas que estou sob os pés da ira do deus que me corrói as entranhas com uma águia.
Eu que passo os dias a contar o tempo, procuro fugir de mim. Procuro esquecer-me de mim, mas não posso. Sei que meu fim é exclusivo de meu corpo. Sei que o sofrimento que verto em sangue por esse chão veio da teimosia que nunca neguei, do equilíbrio entre o bem e o mal que jamais exercitei.

Eu que amei a criação mais do que a mim e a presenteei com o segredo dos deuses e com o fogo de suas paixões recebeu aquilo que o supremo me prometeu. E talvez por isso nunca esqueço-me de que me chamo Prometheus e que lutei pela proximidade entre os deuses e a humanidade.

Significados



Na brasa de mais um cigarro aceso ela contabilizava por quantas camas já havia passado as suas noites.
Silenciosa, imaginava uma lista de quantas vezes sussurrava palavras em orelhas frias que esqueceriam tudo aquilo pela manhã.
Tentava lembrar as cores dos lençóis em que se enrolara nas manhãs de atraso, quando o despertador preguiçoso não se lembrou de acordá-la.
Deu-se conta de que ainda esperava como uma donzela por alguém que a despisse de verdade.
Para todas aquelas coisas que já havia feito na vida existiam significados. Uma mesma ação tomava nuances diferentes. Mas nada nem ninguém ainda a tinha tocado de verdade.
Envolvidos na fumaça de seu cigarro, seus pensamentos ganharam os céus pintados no teto do quarto, já com tintas desbotadas. Se pudesse fazer três desejos, apenas um bastaria. Não porque se satisfazia com pouco, mas por ter encontrado, naquele momento o único significado que valia a pena desejar.
Desejaria, de todo seu coração, alguém que a visse nua. Não, não alguém que jogasse suas roupas pelo assoalho, mas alguém que a desnudasse plenamente, até a alma. Alguém a quem ela se mostraria completamente nua, sem nenhum medo.
Diante de seu expectador se revelaria. Abriria todas as suas gavetas, contaria todas as suas histórias, organizaria todo o seu mundo e, livre, o convidaria a entrar, sem pressa, com leveza, com entrega.
Despida de si mesma ela teria a firmeza e a segurança de convida-lo a participar de sua vida. Convidaria-o a tatear a sua pele e os seus sentimentos. Iria se desfazer de toda maquiagem, de todos os artifícios que a afastavam de quem realmente era, deixando à tona apenas sua própria essência, aquela que ela tinha por costume deixar velada.
Frente a frente com seu expectador não temeria perder nada, pois já o teria ganhado. Já teria conquistado o maior espaço que se pode haver no mundo, que é o coração de alguém.
Exposta ao seu único observador, aos poucos, ganharia coragem de sair nua pelas ruas. Uma nudez que não se refere às roupas, mas ao que se sente e, de peito aberto, passaria a encarar todos com olhar mais altivo, mais certeiro, confiante de quem sabe muito bem o que quer, para onde vai e qual a companhia tem.

Na brasa de mais um cigarro, percebeu-se brasa à espera de um sopro leve para incendiar. E desejou ter direito a pelo menos um pedido a uma estrela cadente que riscou o céu naquele momento.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

(Falta de) Planejamentos

(Izadora e Fernando, julho de 2014, e eu, segurando a barra do véu!)

É curioso como a gente não é capaz de planejar a vida. Por mais que a planejemos!
Estou aqui sentada em minha mesa de trabalho fazendo algo que gosto. Enquanto preparo as minhas aulas saboreio deliciosos brigadeiros – presentes de alunos, que organizaram um café da manhã em comemoração à Semana do Estudante.
Tenho uma rotina normal. Como, reservadas nossas devidas proporções, todos nós temos.
Não faço muitos planos, mas também não deixo de fazê-los. Poucos. Bobos. Alguns eu sei bem que não cumprirei. Definitivamente eu não irei malhar essa semana por mais que refaça esse plano a cada novo brigadeiro que como.
Dou uma pausa no trabalho e entro no facebook. Vejo as fotos do casamento de um amigo e me dou conta do quanto a gente planeja e não cumpre. E que, na verdade, não somos capazes mesmo é de planejar nada!
Há 15 anos atrás a gente nunca ia imaginar um casamento para nenhum de nós. As aventuras adolescentes de andar nos trilhos dos trens que corta o centro de nossa cidade natal seriam eternas.
Seríamos os melhores amigos para sempre. Nossos encontros seriam diários, como naquele tempo da escola. Os assuntos nunca teriam fim. iríamos trabalhar, claro! Ganhar dinheiro. Sair. Morar sozinhos. Namorados, sim. Casamento, huuuum, muito incerto e adulto demais para nossas cabeças.
As folhas do calendário foram caindo e os anos , 15, se passaram.
Nossos planejamentos para o futuro mudaram. Tomaram outros rumos. Não ficamos ricos, mas somos bem sucedidos (para nós mesmos) naquilo a que nos propomos porque fazemos o que gostamos e isso nos basta. Pagamos nossas contas muito bem, obrigada. Mudamos de cidades. Uma vez. Duas vezes. Várias vezes. Não nos vemos todos os dias. Na verdade, chegamos a passar anos sem nos encontrarmos. O que não é trágico. É saudoso.
O tempo não nos permite mais andar nos trilhos dos trens, mas o banho de chuva no dia do casamento conservava a mesma temperatura de 15 anos atrás. Talvez agora mais feliz. Mais maduro. Com outro sabor.
Os assuntos não tiveram fim. Eles foram se acumulando. Ganharam novas pautas. Agora temos as lembranças e as tantas mudanças. E os planos. Não mais de futuros longos, mas de quando será a próxima visita. Alguns meses está ótimo. Mais do que isso poderemos nos esquecer. A agenda é cheia e a perderemos em qualquer mesa por aí.
Morar sozinhos, comprovadamente não é das coisas mais fabulosas do mundo como imaginávamos. As contas chegam. O tédio chega. A louça não se lava sozinha. Tampouco o fogão faz a comida sozinho. E nem sempre a casa vai estar cheia de amigos. E nem sempre os amigos serão mesmo amigos. O tal tempo dá uma peneirada neles. E só os que são de verdade ficam. Só eles não vão esquecer o seu endereço. Ou se esquecerem, darão um jeito de correr atrás de você.
O casamento, bem... é uma coisa que acontece. Um dia você se apaixona, descobre que ama e que quer ficar junto pra sempre. E é assim. Para uns dá certo, para outros não. E não será por falta de planejamento. É que isso é coisa que acontece mesmo.
Estou eu aqui, sentada em uma mesa cheia de corujas com livros, brigadeiros, café e as fotos de um casamento de um amigo e penso. Penso em como a gente agrega as pessoas na nossa vida e em como é bom participar desses pequenos-grandes momentos da vida dos outros, dos nossos, dos amigos.
Penso em como os nossos planos feitos há 15 anos deram certo porque, na verdade, graças a Deus!, deram errado! Penso em como é bom crescer e ver que a vida é feita de planos que falharam e só forram o chão para a gente passar por cima e ser mais feliz e embrulhar momentos mais incríveis.
Estou pensando que o bom de viver é mesmo ver esses planos voarem. E ver como o véu da noiva ficou lindo nas fotos de casamento... E em como é lindo ver um amigo nos dar de presente uma nova amiga. E em como os caminhos são perfeitamente trilhados em sua imperfeição e incerteza.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Todos os sons




Todas as vozes que saíram de minha garganta tinham remetente e destinatário certos. Cada som que emiti, tentando traduzir em palavras o que eu sentia saiam de mim rumo a mim mesma.
Ao longo dos anos não economizei rimas. Declamei aos quatro ventos todas as frases que pude e matei todas as minhas sedes de prosa, mesmo quando bebia silêncio.
Quando tocada pela angústia fiz de carvão desenhos de minha tormenta, para contrastar com os sóis de giz que rabiscava nos muros das casas pelas vielas que caminhei.
Quando ferida, aproveitava o sangue pingado para colorir as pétalas caídas sob meus pés, frutos de primaveras extintas há muitas luas, quase lembranças dos verões que não vivi.
Bebendo de infinitos alheios, desejei o meu próprio infinito. Desejei fechar eu mesma o meu círculo. Decidi dar vez ao meu grito, abafar o silêncio que me rodeava e reclamar a parte que me cabe de minha existência limitada, mas que jamais chegarei a viver em plenitude e que, portanto, é o meu infinito particular.
Só quando dei conta de que as altas grandezas são alicerçadas em pequenas é que passei a revindicar a conta. A minha conta que só eu poderia pagar. Aquela que só eu deveria por todo o sempre e cujas prestações se disfarçam de suaves, mas nunca deixam de lembrar que a dívida é eterna.
Desejei conter a minha febre de querer sempre mais, atenuando-a com gotas de por-hoje-é-só, mas nunca eram suficientes e, febril, sentia meu corpo latejar ao menor sinal de comodismo.
Sonhei noites e noites com alturas maiores e com meus ímpetos de lançarmos dos abismos que trilhei bem de perto, quase tão de perto quanto meus ataques de egoísmo e egocentrismos. Esses, na verdade, contribuíram para a minha proximidade com meus abismos.
Tentei avidamente fugir de mim mesma quando a convivência não mais suportável, mas não se separa corpo e alma. não se pode abandonar-se a si mesma na estrada. E segui entre a indiferença e a impaciência comigo mesma até que, cansada, desisti.
Todos os sons que já ouvi concorriam para a minha mente e me mostravam que a fuga seria frustrada. Os planos abortados e tudo o mais que negasse o meu lado humano, demasiado humano, levariam-me ao poço. Não o dos desejos que se realizam por uma moeda qualquer, mas ao que parece ser sem fundo, em que bebemos nosso próprio veneno e onde aprendemos a curar as nossas feridas.
Depois de ter desacreditado em mim e em minhas tentativas, deixei-me cair quase sem forças, a contemplar o céu de azul inebriante e percebi que é do chão que retiro as minhas forças. É nele que devo buscar o apoio, a mola para o próximo impulso, a base para os passos vindouros.
Só depois de sofrer e correr e chorar e enxergar toda imperfeição é que pude descansar e ter a certeza de que sou uma exclusividade sem fim, diversa e especialmente iluminada e exposta às janelas do mundo e foi então que percebi a magnitude que se é o ato de respirar, de sentir o sangue a correr pelas veias, de fazer parte da criação. De viver. De ouvir todos os sons

Entraves



À beira do caminho, não sei a direção.
Aos pés não sei que rumo dar.
Às vezes sinto-me perdida,
Tanto que penso em parar.
Não saber o que fazer
Faz parte dos entraves de meu ser.
Equilibro em montes de não-saber-o-quê.
Não saber falar ou calar,
Andar ou parar,
Conter ou gritar,
Atender ou ignorar.
À beira do asfalto, sinto falta
Do tempo em que eu me via
Refletida nas margens do lago
E quanto mais de mim me afasto,
Mais desejo o meu próprio abraço.
Sinto-me perdida
Sinto-me confusa
Pairo sobre o mundo
Distancio-me de mim
Confundo-me com tudo
E não me encontro em nada

Nessa busca sem fim.

Extravio


Extraviei-me de mim.
Olhei-me e não me vi,
Não me reconheci.
Acostumei-me apenas a sentir.
E degusto as sensações
Com as pontas dos dedos.
Bebo o licor transparente de ar,
Do ar que respiro e que vivo.
Embriago-me com o vento ligeiro,
Que levanta a saia
E como a carta desendereçada
Vago pelas estradas
À espera de destinatário.

À espera de um novo dia,
Tudo o que resta é poesia.
Na certeza de sou um extravio,
O papel contém meu desvario...

Lunar






Talvez ela, a lua, nem seja tão fria.
Talvez nem esteja tão distante.
Talvez, ao mesmo tempo que ela entra pela minha janela,
Eu entre nela...
Quem sabe são da lua os versos que me saem?
Quem sabe seja lá a morada de meus silêncios?
Cada boca cala o que pode,
E engole o que deve.
Mas a lua nos devora,
Mastiga nossos planos
Revira o humor.
Talvez seja de lá, da lua, que eu vim
E para onde quero voltar

domingo, 3 de agosto de 2014

Ara Pareisson



Ara pareisson l'aubre secune brunissin li elemen,
e vai li clardatz del tempos gen,
e vei la bruma qui fuma
don desconortz ven pel mon a las gentz,
e sobre totz a l'ausells que.n son mec
per lo freg temps que s'i lur es presentz. 


[Agora aparecem as árvores secas e os elementos se ensombrecem, se distanciam as
claridades do tempo gentil e vejo que névoa húmida pelo desconsolo se apodera da
gente pelo mundo e principalmente dos pássaros, que estão entumecidos pela fria estação que os surpreendeu]. 

(RIQUER, 1948, p. 130)

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Miríades



Bebeu o breu da madrugada.
Os olhos negros misturavam-se com a noite.
Escondia seus planos nas sombras.
Sob os véus dançava.
E o infinito nunca amanhecia,
Nunca clareava,
Não se deixava ver.
Era breu.
Diante de todo escuro, tudo se definia:
O medo, a insegurança, a fragilidade.
A vontade de seguir, o inspirar
– fundo, profundo, de ar e verso –
A vontade de chorar e seu reverso.
Diante do espelho, sem choro nem vela,
(nenhuma claridade era tão ousada)
Transportava seus desejos para outra dimensão.
Conversava com o gênio da garrafa
(de rum, de vodka, de café).
Esfregava a sua lâmpada
(djin ou luz, algo haveria de sair).
E, escondida de si mesmo, se amedrontava:
A multidão de seus pensamentos lhe causava arrepios,
Gritavam sonetos ingleses, ensandecida!
E eram incompreensíveis e necessários.
Não eram apenas dela, eram ela!
Tateando sua loucura,
Passava os dedos pela borda do espelho sem fundo,
Sem luz, sem reflexo
E puxava o primeiro raio de sol.
Puxava o dia pelo cacho do cabelo.
Puxava suas ideias da buraco negro,
Salvando-se em constelações de novos rumos,
Fixando-se em céus de brigadeiro,
De coloridos boreais,
De ontens não vividos,
De amanhãs não pensados,
De promessas para não serem cumpridas,
Infinitas. Infinitos.

Miríades.

Herança



A abertura de um testamento, julgo, é um momento doloroso: estamos diante da enorme beira que passaram a ser as margens do coração. O resto é buraco. É ausência. É a falta de quem era preenchimento.
Vivi a abertura do meu próprio testamento. Senti na pele o arrepio durante a leitura de cada item da lista. Ultrapassaram-me os olhares dos herdeiros, cravejados de curiosidades, sedentos de preciosidades.
Na abertura do selo, nenhuma trombeta tocou. Nenhum anjo desceu do céu. Bestas mesmo eram as caras que esperavam em silêncios os últimos desejos da testamentária. A saber, os meus desejos.
A sala quase vazia ecoava o som surdo do carrilhão e do desfilar dos dedos do leitor sobre as páginas.
Como não poderia deixar de ser, não faltou poesia à introdução. Versos que não encontraram tantos ouvidos quanto gostariam ganharam vida, mas não ritmo, na voz metálica do oficial.
Ali, em poucas linhas, minha única herança deixada se resumiam em uma palavra: memórias. Tudo o que deixei foram as lembranças do que fui, do que fiz e vivi. E nomes. Aqueles nomes que eu gostaria que fossem perpetuados. Aqueles nomes que fizeram parte de minha história.
Restou de herança aos meus queridos um ensinamento e um sentimento pelo qual sempre tive o maior apreço: a amizade.
Ora, se não existe dor maior para o caso de se perder um amigo, tampouco há alegria maior que saber que se teve um.
Em tempos de eu-te-ligo sem que se troquem os número de telefone, saber-se querido e mais, saber-se amigo, vale mais que ouro, mais que marfim. E, então, consciente do valor que os amigos possuem, esses são a minha herança: a certeza de que houve no mundo uma troca de companheirismo, um prazer em aproveitar as horas.
Houve um deleite com a presença, com as palavras, com o que se viveu. Deixei de herança uma palavra de gratidão para a vida: vivi e compartilhei a minha vida.
Diante de olhares decepcionados e outros emocionados, os meus olhos ficaram marejados: eu havia conseguido. Chegara ao topo mais alto que se pode desejar, experimentei as delícias de se ter pares, de saber reconhecê-los e preservá-los.
Ao final da leitura de meu testamento, com a sala esvaziando-se, levantei-me. Lavei o rosto e fiz questão de esquecer a agenda.

Ao despertar do sonho mais lúcido que tive, fiz uma promessa ainda mais sagrada que o tal testamento onírico: deixaria a mesma herança, mas páginas seriam poucas para tantas lembranças. Saí apressada para rever amigos, fazer novos e construir as memórias que me compõem, sendo grata com o ar que respiro

Melodia



Como a chama da vela, todas as noites, 
Meu peito ardia.
O silêncio notívago,
Soava para meus ouvidos como melodia.
Calmos como o azul que passou por tempestades,
Meus suspiros se escondem detrás da cortina.
Alguns lilases me tranquilizam,
Outros me desesperam.
Para todos eles, harmonia:
Daquelas que se convertem em canções,
Daquelas que enchem a boca como orações,
Daquelas que ressoam em notas musicais.
Algumas de minhas paixões me entorpecem,
Outras me enjoam.
Nem todos os dias as mesmas cores me agradam.
As rosas rosas me entediam.
As vermelham, cansam-me.
As brancas trazem desconfiança.
Lugar de rosas é jardim e não jarro,
É ar livre, não claustro.
Há em mim fiapos das teias do destino.
Há em mim fiascos de planos abandonados.
Há uma criança que nunca brinda,
Um poeta que nunca dorme,
Um passo que teima em não ser firme
Um coração que nem bate, nem apanha, sangra.
Um pulso que mede o tempo
Que passa: ora corre, ora descansa.
Há em mim um olhar de tela:
finito mirando o infinito,
Querendo alcançar a melodia cantada pelos anjos,

As promessas de vida e alma.