Naquela
madrugada ela sentia-se como uma personagem desses livros que possuem mil
histórias sem fim, onde os enredos se cruzam, as meadas se entrelaçam e já não
se sabe ao certo como tudo começou, nem tampouco como vai acabar. Não sabia se
as suas histórias eram de faz de conta ou se iriam se fazer acontecer, como uma
canção que ouvira trazida pelo vento.
Sentia-se como
uma fiandeira, com se fosse uma das Moiras, que passa horas a se envolver com os
fios, com paixão, que estica as histórias, que as cruza e que já não sabe ao
certo se elas se guiam por conta própria, se tomam vida, ou se ela ainda as
dirige.
Sabia que era
a peça principal de seu grande quebra cabeças, mas não sabia mais a
importâncias das peças espalhadas à sua frente para montar o cenário. Na verdade
o cenário ela tinha com clareza. O que não conseguia enxergar bem eram as peças
que formavam os personagens.
Não eram
tantos rostos. Não eram tantos traços a serem definidos, mas não havia espaço
no cenário para mais do que uma figura principal, além dela. As outras ficariam
na penumbra, como se fossem plateia de um espetáculo que começaria ao se
abrirem as cortinas.
Ela já não
sabia se dirigia a cena, se escrevia o roteiro ou se apenas se encaixava num
papel. Estava cansada de procurar pelo manual de instruções da vida e de não o
encontrar em lugar nenhum. Essa coisa de só se aprender a viver vivendo a
aborrecida, a deixava exausta.
Desejava ser
plateia. Assistir aos acontecimentos com enorme desapego e irresponsabilidade
sobre eles. Se não tivesse que escalar o elenco e as falas e colocar tudo no
seu devido lugar as coisas seriam mais fáceis e mais bonitas de se apreciar.
Achava dificuldade
em tudo naquela noite. Em outras também. Isso já era recorrente.
Às vezes se
sentia Alice, perdida num mundo de maravilhas, em busca de respostas que
Chesire só complicava, sem nenhuma Lagarta Azul pra ajudar ou baforar cantigas
em seu rosto.
Às vezes se
imagina como Sherazade, imersa em narrativas intermináveis, com personagens que
entravam e saiam com relativa rapidez (ainda mais pra ela, que achava o tempo
tão veloz), com histórias que não terminavam e já emendava em outra, sem que
necessariamente tivesse um começo.
Em alguns
momentos se via como Selene, solenemente sozinha a vagar pelas noites em um céu
só dela. Deusa-lua, com fases e oscilações, com olhos perdidos pra além do
horizonte e à procura de algo que nem ela sabia bem o que era.
Às vezes era
Amelie, complicando todas as coisas à sua volta, principalmente o que era mais
simples.
Era uma noite
como todas as outras, mas ela, mais do que nunca não sabia bem quem era, onde
estava ou pra onde deveria ir. Encontrava-se numa encruzilhada, com duas
possibilidades e a única certeza: a de que a dúvida a acompanharia eternamente,
em qualquer que fosse a sua decisão, afinal, para cada escolha uma renúncia e
para cada renúncia a vontade de saber o que seria se tudo fosse diferente.
Era uma noite
como outra qualquer em que ela não dormia e se perdia procurando o brilho do cinturão
de Orion, ou da constelação de escorpião, no lado oposto, lembrando o desafio
divino e seu desfecho trágico que levou tanto um, quanto outro a virarem
estrelas...
Era uma noite como outra qualquer em que ela
não dormiu, em que esperou o sol nascer só pra dar bom dia e quando o mundo
acordou resolveu se deitar pra descansar, só porque naquele momento não queria
ser igual aos outros. Queria se perder na diferença, na contramão de tudo o que
acontecia lá fora, atrás da sua janela entreaberta.