Visitas da Dy

segunda-feira, 30 de junho de 2014



Lá fora as pessoas não tinham graça. Todas haviam perdido o viço, o brilho nos olhos, o frescor dos sorrisos.
Todos, sem nenhuma exceção pareciam figuras emolduras em peças largas de madeira envernizada. Mesmo transitando entre buzinas e engarrafamentos, pareciam engarrafadas, engessadas, imóveis.
Estranho ter essa sensação. Estranho olhar e não ver nada através dos olhares. Como se todos os globos oculares fossem de vidro, refletindo apenas a luz que recebiam. As almas estava fora dos olhos. Quiçá dos corações. Ainda que em festividades, a tristeza pairava.
Era uma sensação medonha. Dessas de tirar o sono. De espantar os sonhos. De ser malquista pelo mal que causa. Indesejável sensação de vazio que o enchia.
Rodeado por temas desinteressantes, só lhe restava retribuir com desinteresse. Nada chamava a atenção. Nada despertava a menor curiosidade. Nada fazia esboçar o menor sorriso. No peito só restava uma angústia.
Uma busca incansável por uma saída se instalava e atormentava-lhe o juízo, deixando dormentes os membros. Debatia-se nas curvas das paredes, dos móveis, das frases mal lapidadas e sentia-se como em um labirinto.
O som oco de vozes que pouco diziam aos ouvidos não cessavam e incomodavam, tirando o sossego. Diferentes de todos aqueles olhares perdidos ainda conservava um gosto pela vida, mas já não sabia como preservá-lo. Como encontrar a saída? Como escapar desse sótão empoeirado e ver a uz do sol?
Queria poder dormir por dias ininterruptos e acordar em outro mundo, outra realidade pelo menos, mas isso não poderia. Seria rapidamente acordado com os apelos roucos que nada diziam de concreto e que o despertariam só pelo prazer de interromper o sossego da alma.
Buscava a salvação. Desejava desatar o nó de sua garganta. Deixar vazar o grito espremido em seu peito, mordido junto com a língua, quase engolido com o sangue próprio e outras tantas palavras engasgadas.
Nem toda água do mundo desentalaria. Nem todo tempero faria o grito menos insosso. Buscava o ar fresco das manhãs e fazia manha para chegar a algum lugar.
Encontrou-se justamente com aquilo de que fugia: com as palavras. À medida em que aprendeu a se aliviar com os verbos inauditos, o nó ia diminuindo. As palavras começaram a atropelar-se e a salvar-se umas às outras e uma confusão de Babel era a solução almejada.
Nem sempre havia sentido nos arranjos de palavras, mas havia o alivia, a redenção dos pecados, a liberdade. E por ter asas leves, cada palavra alçava seus voos e deixava o peito mais leve, menos afogado.
Livres dos alçapões escuros que as prendiam, as palavras voaram e com elas, novas cores tingiram as paisagem das janelas e as molduras que cerceavam as pessoas foram caindo, libertando também a quem as ouvia.

Pelos sons coloridos e audaciosos de palavras antes mudas, fizeram as novas visões e os novos dias. Quebraram-se os grilhões e pensar e falar já não era mais uma tarefa angustiante, mas libertadora.

Dedo Verde


Olhando para o jardim das casas da vizinhança, como se fosse uma estátua que compunha a paisagem, ela refletia sobre o seu não dom de cultivar flores e outras coisas.
Não era a menina do dedo verde. Descobrira isso ainda na infância, mas aulas de ciências, nas quais o seu feijão era o único a não brotar no algodão molhado.
Talvez fosse falta de paciência. Falta de água não era. Incontáveis vezes a professora precisava salvar o pobre feijão do afogamento inevitavelmente provocado pela pressa em ver o broto surgir refletida nos quase dilúvios que caiam sobre o grão.
Outras vezes, diante do fracasso do excesso de água, deixava o feijão em total privação. Fazia do algodão uma sucursal do Saara: sequer uma gota d’água passava perto da experiência. E o broto não nascia. O grão permanecia dormente, como a princesa dos contos de fada à espera do beijo.
Anos mais tarde tentou a sorte com vasos de plantas: lindas violetas só ficavam lindas na floricultura. Na casa dela morriam todas. Até um cacto ela conseguiu matar... de sede!
Definitivamente, cultivar flores não era a sua especialidade. E, nos últimos tempos o cultivo de pessoas também não estava sendo.
Dispersa por sua própria natureza, voando no mundo da lua ou navegando pelos mares de seus pensamentos intempestivos, não era muito apegada aos contatos pessoais. Esquecera-se de que as pessoas – e as amizades – são como as plantas e precisam de doses diárias de cuidado, de atenção, de afeto.
Presa ao fantástico mundo de seus pensamentos organizava a vida como os capítulos dos livros que guardava na estante, sem achar isso algo ruim.
Já havia realizado boa parte de sua lista de desejos para a vida. Já havia plantado árvores. Já tinha brincado de ser poeta, já tinha viajado por terras desconhecidas, que sequer sonhara alcançar.
Empenhava-se em manter a ordem que havia criado e assim estava tudo como deveria, mas esquecera-se de cultivar... as pessoas. Estabelecia contatos curtos, com prazos de validade: não se apegava, não se deixava cativar e nem fazia muita questão de firmar nós. Os laços brandos que formava pareciam feitos de nuvens e logo se dissipavam.
 Aos poucos o seu jardim de pessoas estava perdendo os sorrisos. Aos poucos o seu dedo marrom distanciava os risos frouxos e uma paisagem ressequida se formava.
Em um outono desses, percebeu seu quase inverno e passou a se esforçar mais. Passou a refletir sobre as medidas que a vida solicita. Percebeu que para cada uma de suas sementes havia medidas d’água diferentes e, talvez por isso, por sempre usar a mesma medida, não conseguia ver flores desabrochando ao seu redor.

Diante das diversidades passou a ter novos olhares, novas medidas, novos tratos e já podia ver brotos, sinalizando a volta da primavera mesmo fora da estação.

domingo, 29 de junho de 2014

Iazul


Esquece, meu bom e dedicado amigo, esquece, por um momento, as tristezas e aflitivas preocupações; livra-te dessa angústia torturante instilada em tua alma pelas incertezas da vida; senta-te, aqui a meu lado, e escuta, com religiosa atenção, a famosa lenda que os poetas árabes intitularam: Iazul! Sim é isso mesmo: Iazul!
Em nome de Allah, Clemente e Misericordioso! Viveu, outrora, na Pérsia, meio século depois de Timur Lenk, um Príncipe, generoso e bravo, que se chamava Shack Bock. Afirmaram historiadores altamente balizados que esse glorioso Emir tinha em sua importante corte um sábio, mestre e conselheiro, cuja nobre função era orientar o monarca em suas decisões, esclarecê-lo em suas dúvidas e corrigi-lo em seus erros e injustiças. Esse ulemá, judicioso e previdente, chamava-se Ismail Hassan, e era, pelos nobres muçulmanos apelidado o Saryh (aquele que é sincero).
Um dia muito cedo, logo depois da prece da madrugada - prece do ritual que os árabes denominam sobh - o Príncipe mandou que viesse à sua presença o conselheiro da corte. Fazia todo o empenho em ser urgentemente elucidado sobre um caso que se apresentava enrodilhado pelo mistério.
Sem perda de tempo, o ilustre Ismail, o Saryh, deixou os seus aposentos, e foi ter ao luxuoso divan (sala de audiências) do soberano persa.
O que teria acontecido? Que caso, assim, tão grave intrigava o Rei? O monarca parecia pálido. Em sua fisionomia morena surgiam, tracejando linhas incertas, as setes rugas da intranquilidade. Depois das saudações habituais, sem mais preâmbulo, disse o Emir ao judicioso Ismail:
- Acabo de receber, do Khorassan, este pequeno cofre, encontrado pelos meus agentes secretos, entre os despojos do infeliz e estouvado Khalil, senhor de Candahar. Dentro desse cofre vinha apenas esse singularíssimo anel de ouro. Desconfio de que se trata de jóia raríssima, que pertenceu ao grande Timur Lenk. Como poderei descobrir o enigma que envolve esse anel?
E o Príncipe, estendendo a mão, entregou ao douto Ismail o misterioso anel de Candahar.
Ismail, o sábio (Allah, porém é mais sábio!) examinou detidamente a joia, virando-a e revirando-a na palma da sua mão. E depois de refletir, em silêncio, durante algum tempo, assim falou ao Príncipe, seu amo e senhor:
- Julgo-me capaz de esclarecer esse mistério. Afirmo que uma das peças mais valiosas do tesouro persa acaba de chegar às vossas mãos. Este anel é o precioso e tão ambicionado anel mágico, que pertenceu ao invencível Timur Lenk, o Perseverante (que Allah o tenha entre os eleitos!). Como podeis ver, este anel no rico escudo em forma de tâmara, ostenta em letras bem talhadas a palavra tão bela e sonora: - Iazul.
- Sim, sim - confirmou o Príncipe, muito sério - já o havia notado. No escudo, entre dois brilhantes pequeninos, lê-se a palavra: Iazul. O mistério, a meu ver, permanece. O que significa, afinal, Iazul?
O sábio Saryh ergueu o rosto e, discorrendo em tom pausado e claro, explicou:
- Cumpre-me dizer-vos, ó Rei do Tempo!, que Iazul é uma palavra mágica, de alto poder. Asseguro que é a palavra mais expressiva e eloquente entre todas as que figuram no riquíssimo vocabulário persa. É mágica, repito. Reparai bem: Tem o dom de nos tornar alegres, quando estamos tristes, e de moderar as nossas alegrias, nos momentos de extrema felicidade e ventura.
- Singular, muito singular - refletiu o Rei. É, realmente, de alta magia, essa palavra que transforma as alegrias em preocupações, e que consegue aniquilar, ou pelo menos conter, as mágoas e tristezas que pesam em nosso coração!
E, fitando gravemente o sábio, acrescentou:
- Mas insisto em perguntar: O que significa essa palavra Iazul? Como podemos traduzi-la?
Respondeu o eloquente e esclarecido ulemá:
- Iazul, ó Rei!, dentro da sua espantosa simplicidade, significa, apenas Isso passa! Quando o homem atravessa períodos de felicidade, de alegria cor-de-rosa, de sorte e tranquilidade, deve pensar no futuro e ser comedido em suas expansões, sóbrio em suas atividades.
Convém que o afortunado não esqueça: Iazul! (Isso passa!), a roda do destino é incerta; a vida é cheia de mudanças. Há ocasiões, porém, em que nos sentimos anavalhados pelos sofrimentos, pelas enfermidades, feridos pelas desgraças, caminhando sob a nuvem da má sorte, da ruína e atingidos pelos golpes imprevistos do infortúnio. Para que o ânimo volte ao nosso espírito, proferimos, cheios de fé, fortalecidos de esperanças: Iazul! (Isso passa!). Sim, tudo passa! Virão dias melhores, dias calmos e felizes; a prosperidade e a boa sorte voltarão a iluminar a nossa jornada; a saúde será reconquistada; a serenidade procurará pouso em nosso atribulado coração! E, assim, ó Rei!, posso afirmar que Iazul, a palavra contida no pequeno escudo deste anel, é mágica! Alivia e abranda as tristezas dos infelizes; controla e arrefece as alegrias alucinadas dos exaltados!
Ao ouvir as eloquentes e judiciosas explicações do velho ulemá, o Rei tomou do anel, colocou-o no dedo indicador da mão esquerda e disse, serenamente:
- Que notável, interessante e proveitosa lição recebi hoje! Conservarei comigo este precioso anel. Jamais esquecerei em todos os momentos culminantes de minha vida, no meio de estonteantes triunfos, ou sob o guante da desgraça, de recorrer ao eterno ensinamento contido nesta palavra mágica: Iazul!
Quero, ó irmão dos árabes!, terminar esta lenda, exatamente como a iniciei:
Esquece, meu bom e dedicado amigo, esquece, por um momento, as tristezas e aflitivas preocupações; livra-te dessa angústia torturante instilada em tua alma pelas incertezas da vida; senta-te, aqui a meu lado, e escuta, com religiosa atenção, a palavra mágica Iazul!
E vale a pena repetir: Iazul! Iazul! Isso passa! Isso passa!
Realmente meus amigos IAZUL é uma palavra que devemos trazer no coração sempre.
IAZUL!
IAZUL!
Isso Passa!

TAHAN, Malba. IAZUL: Lendas Orientais.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Palma das Mãos


Trazia nas mãos palavras encantadas, mas nem sempre as distribuía por aí. Gostava de guardá-las como se fossem seus tesouros mais preciosos.
Na ponta dos dedos carregava uma delicadeza digna de versos, soando suaves como sonetos que falavam de amor e jamais fechavam as suas rimas com dor.
Na palma das mãos era capaz de traçar destinos tão leves feito uma bolha de sabão, tão coloridos quanto um arco-íris, mas também era capaz de embolá-los como novelos, brinquedos de gatos manhosos em tardes amenas.
De longe essa poderia ser destacada como a sua especialidade: embolar as palavras. As ditas, as não ditas, as desditas. Sortilégios de quem nasce com um quase-dom da escrita: não saber conter-se.
Entre um papel e uma caneta, a folha em branco sempre trazia uma poesia. As linhas vagas sempre estavam à espera de prosas, dedos de prosas descompromissadas envolvidas em aromas e sabores fortes de cafés e chás, de raios de sol e de cheiro de terra molhada.
Não sabia conter-se e também não sabia o que fazer com o ouro que lhe brotava das mãos. Sentia-se um pouco como Midas, mas com mais valor do que o resultado do rei. Para ela as suas palavras eram muito mais valiosas que qualquer ouro.
Quase todo papel que tocava era transformado em palavras. Da boca saiam risos rimados. As palavras soltas se ajuntavam entre seus dedos. Meneavam e arranjavam-se de modo envolvente, desejosas de serem ouvidas por um ou outro vento. Mas eram todas guardas.
A arca sagrada onde as palavras, frutos daquelas mãos, eram guardadas não era de cedro do Líbano, de madeira de lei, de ouro. Era de carne e sangue, de pulsar, de contrair-se e dilatar-se a cada nova palavra. A cada novo arranjo.
Tudo o que lhe viam com aquelas palavras era guardado no coração. Por isso, só poucas palavras eram expostas. Por isso, quem bem entendesse poderia enxergar ali, grãos dela mesma, velados em contextos diários, quase fictícios, mas com matizes de uma vida real.
As palavras que trazia nas mãos nem sempre nasciam dela mesma. Às vezes a escolhiam por morada e ela, generosa, acolhia todas. E as ninava, cobrindo-as com seus sonhos, alimentando-as com sua seiva vital. Aceitava usar e ser usada pelas palavras que lhe pousavam nas mãos. E assim, seguia seus dias escrevendo.

Dava guarida aos versos, às rimas, às palavras e dormia tranquila. E sonhava sonhos de azul. E escrevia coisas que talvez nunca seriam lidas. Escrevia. E sentia-se uma escritora que habitava estantes empoeiradas a espera da descoberta de leitores que também acolheriam as suas palavras. 

domingo, 15 de junho de 2014

Peculiaridades


Temo em usar a máxima do “cada macaco no seu galho”. Pode ser que se levantem bandeiras contra a simples frase, alegando dizer muito mais do que eu pensei. Em tempos de bananas em estádios, de somos-todos-macacos, eu só quero mesmo dizer que devemos cada um ocupar o seu espaço. Longe dos macacos reais ou dos tantos que nos inventam.
Poderia usar um “cada um no seu quadrado”, afinal, quero mesmo é falar das nossas esquisitices particulares que cultivamos com tanta estima e que haja paciência alheia para aguentar! Mas não teria o mesmo efeito. Talvez caiba bem um “cada louco com sua mania”, já que todos flertamos com a loucura em dias mais ferventes.
Cada um de nós tem a sua própria coleção de manias e a minha é o gosto pelos fones de ouvido – mesmo que não haja música tocando –, os livros espalhados, mesmo que não leia todos ao mesmo tempo e o café, quente ou gelado, menos morno. Nada morno.
Há quem goste de multidões. Há quem goste de solidões. Há quem goste de mares ou de desertos. Há cidades povoadas ou abandonadas. Tem gente que é do dia, enquanto eu prefiro a noite...
Por sermos assim tão deliciosamente diferentes que vejo graça em cada uma das esquisitices pessoais e as coleciono, observando de longe cada uma delas e seus donos, que ora se mostram demais, ora se escondem. Seja lá por preservarem suas sombras, seja por acharem que a luz os faça mal.
Seja lá quais forem as nossas peculiaridades, lá no fundo o que somos é um teatro vazio, onde nós, atores solitários, encenamos para uma plateia inexistente. Onde podemos esquecer as falas e reinventá-las sem que ninguém nos aponte.

No fundo, por mais estranhas que possam parecer cada uma de nossas atitudes, são todas barcos a vela sem rumo em noites de lua crescente, onde pouco se vê diante dos olhos. E como toda viagem precisa de uma trilha sonora, a viagem rumo ao nosso eu deve ser embalada por um blues, daquele que toca sem ser percebido nas madrugadas, mas que faria falta se calasse.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Entre uma Balada e um Blues



Escorriam, do alto dos prédios, sabores de sorvetes derretidos pela língua quente que ousava desafiar aquela estabilidade cremosa.
Os azuis celestes pingavam nas espumas brancas das ondas daquele mar de sensações em mais um fim de tarde.
Perdida nos entremeios daquele domingo, esperando sabe-se lá o quê, ela dançava um blues, soçobrando a calmaria tradicionalmente instaurada naquele que não era um dia de feira.
Os fones nos ouvidos a desconectavam daquele cenário de concretos e amores congelados. Ela ouvia as batidas de seu coração e vivia uma balada: a balada dos primeiros amores. 
(Recusava-se a acreditar em um único primeiro amor, pois defendia o ineditismo de todas as emoções vividas.)
Como se o tempo parasse para assistir a sua euforia, dançando no meio do mundo, expondo as suas alegrias e deixando-se mais leve do que a pluma de Osíris, ela observava a fonte seca do meio da praça. Ou nem isso. Olha e nem via. Dançava. Quase pairava.
Podia ser a Praça Paris ou o Passeio Público. Poderia ser em qualquer um dos jardins da cidade ou próximo ao Relógio das Flores, pouco importava o lugar. A balada é que dava o tom daquele blues que era quase tranquilo como o seu amor.
Descobrira-se apaixonadamente envolvida em novos versos, novos nomes, novos dedos emaranhados e traçava planos de tranquilidade e companheirismo para as tantas horas que pulariam entre as nuvens daqueles céus de outono.
Achava o seu blues tranquilo. Achava o seu amor tranquilo. Mas estranhava, já que nem blues e nem amores são tranquilos. Deu-se uma folga. Não pensava em nada. E era levada, em-balada pelo som.
Ali, no meio da praça, apaixonada, ela parecia ter nascido para dançar. Parecia ter nascido entre as flores. Parecia louca deixando o corpo envolvido em cada novo acorde que ouvia.
Estava entregue à nova descoberta: a música jamais ouvida lhe despertara sensações inexplicáveis e a envolvera como nada antes havia conseguido fazer.
Ali, entre passantes, pombos, pipocas, crianças, ela havia apaixonado-se perdidamente pelas notas suaves e (quase) tranquilas daquela canção, deixando-se solta entre uma balada e um  blues que, a partir daquele momento, passou a ser tão sua.
Ali, em um domingo quase sem graça, ela redescobriu sons de tempos passados e sonhou ser uma nota daquela partitura.
Naquele fim de tarde ela descobriu-se amante também da música, sem deixar de lado a poesia, porque não lhe cabia a monogamia quando se tratava das artes e, agora, flertava também com as cores, pingando matizes de risos lunares ao crepúsculo de despedida de um sol alaranjado.