Falta-me a rotina. Na verdade abdiquei dela.
Não é possível que eu pare todos os dias ao mesmo horário à frente da
caneta e do papel e lance sobre eles as palavras. Escrever não é só isso.
Escrever é revelar-se aos poucos tanto e quase nada nas folhas em branco.
Mancha-las com minhas histórias, esboçar os sonhos, borrar com as lágrimas.
Não tenho hora para escrever. Não tenho hora pra me reconhecer. Se o
faço no banho ou no passeio pela praça, na fila do banco ou na hora do almoço é
só uma descoberta minha. E as ideias vêm. E a caneta faz-se arma e fere o
papel.
Que me descubro olhando no espelho é fato, mas nem sempre aceito a
exposição que vejo. Nem sempre quero repeti-la no papel. Nem sempre quero
mostrar-me para além de meus olhos. Às vezes os olhares curiosos não me
apetecem e eu os dispenso.
Tenho muitos versos que me são soprados no ouvido pelo vento. Alguns
decoro. Outros tantos escrevo. Na maioria das vezes nem relendo eu os reconheço
e me emociono com o que está ali. E penso em como o autor me leu e me escreveu.
E era eu. Ou era outro. Poeta é assim: lê a alma dos outros. Ou as almas são
todas iguais e a gente é que finge que não?
Às vezes brinco de poeta. E fujo da rotina. Escrever é o milagre do que
se sente com o que se deixa perceber. E só. Desfio a madrugada em versos que
nem em sonho faria. Às vezes conto as gotas das chuvas frias em contos sem fim.
Escrever é brincadeira de criança que só se faz depois de grande. É
construir abstrações concretas. É seguir fielmente a rotina da qual se corre,
mas que se torna um alívio sagrado para quem se sente transbordante de
informações, de palavras, de sentimentos.
Escrever é a rotina que deságua sobre as horas improváveis e da qual
corremos como o rio em direção ao mar. É madrugada desperta, tarde sonolenta,
boemia no sofá da própria sala, preguiça de parar. É a ação inevitável de alma
que precisa e quer se salvar das agonias que bebe todos os dias.
Escrever é ter a sensação de voltar no tempo e mexer no relógio,
fingindo não estar atrasada mesmo quando o despertador não toca, quando o
ônibus não passa ou o sinal não abre.
Escrever é a rotina dos meus dedos cansados que varam a madrugada como
se estivessem sendo recarregados e descarregados dos vários humores que viveram
nas horas diurnas e que só parecem ter o seu alento quando a hora é mais
escura.
A rotina de se escrever é mesmo não ter uma rotina. É ser livre. É criar
brechas nos dias, como quem abre uma entrelinha, um parênteses no meio das
obrigações.
Não escrevo por rotina, nem tenho uma rotina de escrita, mas asseguro
que as letras são minha âncora em mar bravio, minhas asas em céus violeta, meu
refúgio a cada madrugada.
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