Visitas da Dy

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Herança



A abertura de um testamento, julgo, é um momento doloroso: estamos diante da enorme beira que passaram a ser as margens do coração. O resto é buraco. É ausência. É a falta de quem era preenchimento.
Vivi a abertura do meu próprio testamento. Senti na pele o arrepio durante a leitura de cada item da lista. Ultrapassaram-me os olhares dos herdeiros, cravejados de curiosidades, sedentos de preciosidades.
Na abertura do selo, nenhuma trombeta tocou. Nenhum anjo desceu do céu. Bestas mesmo eram as caras que esperavam em silêncios os últimos desejos da testamentária. A saber, os meus desejos.
A sala quase vazia ecoava o som surdo do carrilhão e do desfilar dos dedos do leitor sobre as páginas.
Como não poderia deixar de ser, não faltou poesia à introdução. Versos que não encontraram tantos ouvidos quanto gostariam ganharam vida, mas não ritmo, na voz metálica do oficial.
Ali, em poucas linhas, minha única herança deixada se resumiam em uma palavra: memórias. Tudo o que deixei foram as lembranças do que fui, do que fiz e vivi. E nomes. Aqueles nomes que eu gostaria que fossem perpetuados. Aqueles nomes que fizeram parte de minha história.
Restou de herança aos meus queridos um ensinamento e um sentimento pelo qual sempre tive o maior apreço: a amizade.
Ora, se não existe dor maior para o caso de se perder um amigo, tampouco há alegria maior que saber que se teve um.
Em tempos de eu-te-ligo sem que se troquem os número de telefone, saber-se querido e mais, saber-se amigo, vale mais que ouro, mais que marfim. E, então, consciente do valor que os amigos possuem, esses são a minha herança: a certeza de que houve no mundo uma troca de companheirismo, um prazer em aproveitar as horas.
Houve um deleite com a presença, com as palavras, com o que se viveu. Deixei de herança uma palavra de gratidão para a vida: vivi e compartilhei a minha vida.
Diante de olhares decepcionados e outros emocionados, os meus olhos ficaram marejados: eu havia conseguido. Chegara ao topo mais alto que se pode desejar, experimentei as delícias de se ter pares, de saber reconhecê-los e preservá-los.
Ao final da leitura de meu testamento, com a sala esvaziando-se, levantei-me. Lavei o rosto e fiz questão de esquecer a agenda.

Ao despertar do sonho mais lúcido que tive, fiz uma promessa ainda mais sagrada que o tal testamento onírico: deixaria a mesma herança, mas páginas seriam poucas para tantas lembranças. Saí apressada para rever amigos, fazer novos e construir as memórias que me compõem, sendo grata com o ar que respiro

0 Comentários:

Postar um comentário