Encantada. É assim que fico diante de você.
Espero pacientemente que durma, que se entregue ao descanso diário e necessário
para que eu possa me despertar enquanto lhe observo.
Perco-me na doçura de seus olhos fechados, que quase nada viram do mundo
e lamento pelos meus próprios olhos que tão pouco viram e que se enchem e se
satisfazem com a sua visão.
Admirada, sinto-me deusa pagã de tempos antigos. Sinto-me aquela a quem
prestam homenagens, mas nunca alcançam e que por mais que fosse amada, jamais
chegou a ser entendida.
Enquanto dorme, eu-deusa, tenho pauras de endoidecer. Tenho desejos de
lhe (d)escrever e sinto-me incapaz de
dominar as letras indolentes. Mas como deusa do seu amor não precisaria dominar
essas letras que acabam por ser tão frias. E volto a ver-me como mulher. A
mulher que se desmancha diante dos olhos fechados do amado.
Eu, mulher-desmanchada-de-adimirar-lhe-o-descanso, percebo-me mais que
uma deusa, mais que simples mulher. Vou além daquelas que passaram. Vou além
daquelas que apenas existem. Vou além daquelas que tentam chamar a atenção e
despertar-lhe os desejos, porque eles já são meus.
Coube-me guardar o seu repouso, os seus sonhos, o seu sossego e como
prêmio ganhei a descoberta de meu dom. O mesmo dos escribas. A função nobre de
me perder em palavras e só me encontrar tecendo linhas sobre você, sobre o que
vejo.
Tudo o que os deuses antigos não souberam ou não puderam restou de
herança aos poetas que, corajosos, se despem vestindo de versos. E eu uso as
palavras como vestido. Em noites de galas, redondilhas. Em dias comuns
virtuosismos.
Pouco importa de onde saem, para onde vão, como foram feitos. O que me
vale é a inspiração. É o momento em que meus olhos pousam sobre você e param
estáticos, invejando o silêncio que o envolve e o ar que lhe dá a vida.
Cabe-me ser escriba do que sinto, do que penso sentir, do que sentirei e
daquilo que jamais experimentarei. Cabe-me ser poeta, domadora de rimas, descobridora
de léxicos, que faço para brindar-lhe com meu vinho mais encorpado, mais
saboroso, de embriagar sem tirar o juízo, de saciar sem acabar com a sede para
ser repetido.
Cabe-me ser maior que a vida e a morte e as suas pelejas, ser poesia,
ser voz ouvia em milhares de anos, canto nunca silenciado. Cabe-me encher as
taças e erguer brindes e entoar canções.
Cabe-me preservar o dom milenar de quem dominou a pena. Escriba. Jardineira
de rimas, que cria flores em versos e deixa se ler em reversos. Semear perfumes
de antigamente em corações sedentos de hoje e de gotas de amanhã-de-manhã,
dando vida para as vidas que virão e alento para as que aqui estão.
Encanto-me com o seu silencioso adormecer e sinto-me engrandecida e feliz
por descobrir-me pelos seus olhos, ainda que fechados, ainda que inconscientes
do despertar que me causam. E escrevo. E quando o sono vem, repouso feliz, com
mais um verso pronto, pousando-lhe nos lábios um beijo de agradecimento e
sinceridade. Sussurrando-lhe meu nome e novas promessas de um dia bom.
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