Era gato
escaldado. De tanto quebrar a cara, já diagnosticava tudo com antecedência.
Pulava antes do tombo, caia de pé, mas sentia o baque. À noite não era pardo,
mas negro. De sombras. De dia, preguiça, malandragem, ginga e observação.
Atrás do que
desconhecia, atrevia-se até o limite de segurança, podendo ir mais além se
fosse conveniente.
Há tempos não
ia.
Divertia-se em
fazer de ingênuo, em pôr-se em adoção e depois fugir do lar que lhe foi dado.
Não era
questão de ingratidão. Era se-gu-ran-ça. As casas ofereciam segurança demais. E
isso deixava qualquer gato cansado. Ainda mais se esse tivesse a liberdade como
lema.
Para as suas
vontades um ou outro pulo bem dado resolvia, entre muros e varandas,
contemplava céus de brigadeiro, estrelas distantes ou se balançava calmo nos
poentes. Na verdade mudava com o vento. Era folha solta seguindo seu rumo.
Não temia a
água fria, dizia. Era precaução. Tampouco as novidades. Era só um
resguardar-se. Era a vantagem de ser escaldado. Não perdia a elegância, não
deixava transparecer os medos. Dizia, aliás, que eles haviam sido afogados.
Escondia-se
atrás de suas sombras e as misturava muito bem às sombras noturnas, preferindo
sempre madrugadas a dias de sol a pino.
Era gato
escaldado e solitário. E dizia-se feliz assim. Não era. Quando via a sua
silhueta imersa nas várias sombras experimentava a sensação de ser no outro e
queria, no fundo, ter com quem misturar-se.
Era escaldado,
tinha suas mágoas e criara um personagem que não servia mais. Não conseguia
enganar-se, mas não desfazia-se da pose de que se bastava. Um dia, quem sabe,
assumiria que mesmo um gato escaldado sonha sob as estrelas e que tem desejos
de além.
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