Enquanto contava as horas que se estendiam e arrastavam em descompasso
com o escuro da noite que se dissolvia em madruga, guardava beijos nas conchas
das mãos, esperando quem os recolhesse.
Construindo castelos de poeira nas bordas das páginas dos livros lidos e
daqueles que foram comprados e esquecidos, parte da velha mania de colecionar
retângulos coloridos na estante pesada do canto da sala.
Mesmo nas madrugadas longas, enchia as mãos de sol. Esfarelava o brilho
em pequenas fagulhas que soprava pela janela, estrelando os céus solitários que
entravam por outras janelas insones.
Desencontrava-se de si mesma em pensamentos soltos e os escrevia em blocos
de papel que se perderiam na próxima estação, que nunca ganhariam espaço, nunca
seriam conhecedores da primavera.
Era um rio de sentimentos aprisionado em montanhas tão latas quanto seus
sonhos, mas não sabia o caminho dos mares e morria um pouco mais dentro de si a
cada dia. E calava as palavras. E as engolia. E quase se afogava em seu vale de
lágrimas e contas perdidas.
Tocava o céu com seu peito aberto, arrepiado pelo vento, olhos atentos a
todos os movimentos que só se podiam sentir. Via tão além e se distraia que o
perto não lhe era conhecido: fado doido de quem se encanta por tudo o que vê e
com pouco se contenta.
Se voasse seria uma gaivota, que troca os céus por mergulhos, que
desafia os limites e se diverte em rasantes.
Se fosse peixe seria o de um aquário, que passa os dias esperando o
nada, sem saber de nada, só sonhando com as correntezas que experimentou há
muitas luas.
Inquieta, poderia ser faísca solta de fogueira, que se lança atrevida, mas
cansada, apaga e se recolhe em cinzas.
Fosse palavra, seria tantas que não caberia em uma única língua e léxico
nenhum conteria toda a sua essência e nenhuma gramática a arranjaria, nenhum
tradutor a dominaria.
Sendo aquela que mata um leão por dia, não se daria por satisfeita e
amansaria também as onças e se ajuntaria
a elas, aprendendo a arte de ser livre e feroz e sagaz e paciente quando
necessário.
Se fosse silêncio seria aquele que paira sobre os cetins e tapetes
antigos, das terras tão misteriosas quanto longínquas, seria véus espalhados
pelo ventre á espera de mão que os soltasse.
Se fosse tudo isso, ainda assim se perderia e nenhum sentido bastaria,
porque a busca e os desejos eram tudo o que a movia e entregar-se não fazia
parte dos planos. Mesmo quando quase enlouquecia.
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