Dentre as tantas coisas que sempre quis colecionar e as tantas que
colecionei reservei espaços para os sonhos, minha especialidade. Por eles dei o
sentido necessário à minha vida. Como se fossem o ar que eu respirava.
Muitas vezes encerrei-me em meu mundo interior, ocupada de sonhar por longas
horas, acordada, avoada, distraída, sendo tantas outras, construindo outros
mundos, outras cores, outros sopros de ventos, outras moradas de paredes que
desafiavam qualquer engenharia.
Doía-me só o despedaçar dos sonhos caídos ao chão. Pulsava mais forte o
sangue que pingava dos dedos que tentavam ajuntar os seus cacos. Sobressaiam-me
os desesperos alados daqueles Ícaros que saiam pelas janelas que eu me esquecia
de fechar e nunca mais voltavam... restavam só as suas lembranças que dividiam
entre si as sensações ao mesmo tempo doces e amargas, de um querer revivê-los e
uma repulsa em saber como acabariam.
Não atrevi a desejar muita coisa em meus dias. Cabia aos meus pés o
caminho, aos meus olhos, o sonho. E sentia-me confortável nessa empreitada. Sonhadora
profissional. Descobridora de figuras em nuvens. Desenhista de sorrisos nos
vidros embaçados. Bailarina das madrugadas e dos sons mudos.
Nunca entendi o que os outros chamavam de viver. Essa correria
desenfreada, essa falta de olhares, de toques, de levezas. Sempre fui de
sutilezas. De dias coloridos. De gentilezas. Por mais que me dissessem que era
preciso acordar, eu não dava ouvidos. Não me agradava a ideia de abandonar meus
planos. Não era por falta de experimentação. Ao contrário. era justamente por
ter experimentado o mundo real, cru como se apresentava que optei pelos sonhos.
Desenvolvi um jeito próprio de ser de onde nunca fui. De ter o que nunca
alcancei e de identificar-me com o que nunca existiu. E não era fuga. Não era
sequer simples. Exigia uma complexidade tamanha fazer parte de um mundo e não
se achar nele. Ainda é complexo. Mas agora a tranquilidade de quem está
acostumada com os trâmites paira.
Toco, com minha poesia, tudo o que não é meu, mas passa a ser por apropriação.
Tenho um eu-lírico mais atrevido que eu mesma, mais desbravador, mais possuidor
de tudo o que quer, pois cria seu mundo.
Permiti-me um amar sem amar, como o poeta que finge. E a alma de poeta
nunca abandona um coração que sonha. E os amores, sentidos ou não, serão sempre
amores e nos permitem as mais belas e tristes e intensas colocações e
esperanças. Como o se o tangível jamais estivesse ao alcance de meus dedos. Como
se um dia Tântalo pudesse se saciar ou Sísifo descansar. Como se fosse possível
viver experimentando o que nunca se experimentou. Como se a água continuasse a
deixar a boca seca. E deixava. E deixa, às vezes.
Talvez seja por isso que me acostumei a sonhar de modo livre. Sem o
menor dos pudores. E sem a menor pretensão de alcançar todos esses sonhos. Eram
quase que colecionáveis. E junto deles eu guardo cartas, músicas, cheiros,
sensações.
Não me isento da vida só porque sonho. Sonho justamente para suportá-la.
Para ter forças nos ombros e coragem nos pés. Sinto cada curvo que dobro. Engulo
cada novo sabor e cuspo longe todos os sapos que me são oferecidos. Em alguns
casos cuspo fogo. Dragão vermelho dos contos de fada, amansado pelas noites de
lua e cativo em torres altas de castelos fortes.
É uma vida mais cheia de fantasias. Não menos dura, não menos real, mas
um pouco mais enfeitada, tendendo a ser mais otimista sempre que possível, mas
permito as boas doses de realismo e um pouco da água do poço fundo do desânimo
em tempos mais difíceis.
Tenho sonhos desertos ou de desertos. Longínquos. Solitários. Outros de
oásis, de festa. De tendas ricas. De paisagens tão misteriosas quanto
encantadoras nas quais não me canso de olhar e buscar. Das quais nunca me canso
de sonhar.
Tenho sonhos como uma mania insaciável de construir. Construo os mundos
como o poeta aos versos. Construo mundos e os venero e anseio por não abandoná-los
e desejo poder tocá-los como música harmoniosa.
Tenho os sonhos como companheiros eternos e inseparáveis, que me dão
mais vida à vida e que só ousarei me separar quando os olhos fecharem para não
mais se abrirem. Quando eu me espichar pelo vão do não-sei-para-onde-vou. E quando,
enfim, estiver encerrada a minha participação nesse mundo, que só é suportável
porque me permito ser um universo onírico e paralelo.