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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Definição



Ser poeta é beber verso
É desprender-se de si e ser o poema
E o poema se assume e se nega.
O poema sufoca aliviando.
É um não caber-se em si 
E não poder abandonar-se.
É uma exaustão que precisa ser prolongada.
É um descanso que não renova.
É tocar levemente o que não existe,
Se não aqui dentro
E, quando muito, se aproxima do outro.
É sobrevida para quem quase agoniza
É um suspiro sem ar
É silêncio que grita desesperos e desabafos
É uma beleza violenta
Que bate e choca e por isso encanta.
Poesia é um lar sem paredes,
Meu castelo de espumas e nuvens e ventos e asas
É onde me perco, me acho, me entrego, me sou.


Avanços




Ninguém sabe onde está o erro. Nem se anda só em linha errata.
Todo mundo perde a hora uma vez na vida ou todo dia. Nem sempre saltamos onde gostaríamos de chegar.
As placas de sinalização, por vezes, não existem. Em outras estão quase invisíveis. Nem sempre eu quero ir pra lá. Na maioria das vezes eu nem sei para que lado olhar.
Ah, já perdi as contas de quantas vezes me desfiz. Quantas vezes virei pó de mim mesma, pó de poesia, catando no chão algumas sílabas métricas para me recompor em novo poema.
Um sem número de vezes viajei sentada no mesmo lugar ou adormeci no ônibus em um trajeto de vinte minutos e pensei ter dormido por mais de quarenta. E perdi planos. E remarquei voos. E não compreendi espaços. E redesenhei a geografia tentando reescrever a História.
Já tentei domar o tempo. Usei chicote e banquinho. Roupa colorida de circo, mas dispensei plateia. (Em certos vexames só me arrisco sozinha.) E foi um fiasco. O tempo riu. Rui. Passou mais rápido, me deixou na mão, acenando para mim, como quem se despede na estação.
Já tentei esticar a linha da vida e caminhar sobre ela, em linha reta, sem erros ou desvio, mas linha era bamba demais e eu sem sombrinha cai. E o fio emaranhou. E a história se misturou.
Tive que separar os personagens, devolver os roteiros e recontar cada caso, percebendo que o inevitável acontece: muitos seguem, outros se perdem e a estrada em linha reta é ilusão. É um estado febril de insolação. É busca que não finda. É atoleiro de barro em terra seca, que o pé preso não se solta de jeito nenhum.
Ninguém anda só em linha reta. Ninguém avança sem medos ou controla a vida. Esse controle não é remoto e pilha nenhuma consegue fazê-lo funcionar. Não se trocam os canais da vida real e há de se beber um pouco de aceitação. Há de se entender que nem tudo é cognoscível. Há o insondável, o extraordinário. O divino.
Há de se entender que nenhuma história será completa e vivida em sua amplitude. As retas paralelas não irão se cruzar. As perpendiculares só se tocam em um ponto e sua união é frágil, mas temos que avançar.
Ninguém consegue esticar as curvas e endireitar o que foi escrito torto, então, que a caligrafia seja decifrada, que o recado seja lido, entendendo-se ou não o que foi deixado em entrelinhas. Se o principal foi dito e compreendido, que fiquemos satisfeitos.
Deixemos de lado as expectativas dos enigmas, dos véus. Esse privilégio de ir além é para poucos. E para raros. A maioria se entrega ao que há de mais comum e óbvio. E segue.



quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Delivery



Entregamos tudo. Esse era o anúncio que li estampado em um baú de motoboy. Como pensamento não faz curva e nem mede seu tamanho, logo estava pensando nos pedidos simples, nos mais complexos (um sorvete de cacau, por favor. Na casquinha e com cobertura de chocolate amargo.) e, claro, nos absurdos bons que poderiam ser entregues pelo rapaz.
Tudo. T-u-d-o. Uma das simplificações mais amplas que já vi, comparada até com gente. Pus-me a pensar, também, no monte de gente que passa por mim todos os dias. E que estavam passando agora.
E se cada uma daquelas pessoas pegasse o telefone e começasse a pedir as suas entregas de absurdos bons? E entendo os absurdos como bons, porque são agradáveis para os seus desejosos.
O baú do motoboy, de repente, se desenhou para mim como a lâmpada de Aladdin. O curioso é que imagina as ruas cheias deles. E as entregas variadas: de coleções de selo e papeis de carta até àquela pessoa amada que por promessa em outra propaganda chegaria em três dias. E sem devolução.
Comecei a fazer uma lista de coisas que eu pediria: chá de menta geladinho, estante que brota livro novo, inspiração que não se amedronta na frente do  papel, abraço e beijo de filho mesmo quando ele já cansou de brincar disso – lá pelo décimo beijo seguido.
E se cada um de nós começasse a fazer as suas listas? E os motoboys fieis à propaganda, atendessem? E se eu tivesse que conviver com os absurdos bons dos outros?
E se esses desejos absurdos não fossem bons? E, filosoficamente, comecei a pensar que o que é bom para mim, não o é para o outro. Se eu desejo ouvir música clássica com toque árabe em pleno centro da cidade, como fica  aquela pessoa que detesta o som do Derbak?
E o senso de limite? E o de espaço? E como ficam todos os outros incomodados? Diante de tamanha confusão, o caos, comecei a pensar na necessidade de se limitar aquele serviço de delivery apenas ao que pudesse caber dentro de um baú de uma moto, restringidos pela boa e velha convenção social ou o tal bom senso.
Como eu posso ser tão conservadora? Simples demais! Conviver com a diversidade do outro pode ser mais difícil do que se pensa e, particularmente, imaginei entregar de toda a sorte de coisas, inclusive um camelo de estimação, o que desagradaria meus vizinhos, caso meu animalzinho chegasse.
A diversidade humana é muito mais complexa do que a caixa de Pandora. É muito mais difícil do que só se imaginar os absurdos de um delivery encantado. Exige de mim um exercício diário. E ele não é entregue por um motoboy. É coisa minha. Só minha. E preciso aprender mais. Todos os dias.


Culpabilidade



As probabilidades não falham. A maior chance que você tem é a de tudo dar errado. E valemo-nos da famosa Lei de Murphy!
Que tudo dê certo, que as coisas se ajeitem é que é o anormal, o fora do padrão, a zebra.
Nesse jogo de loteria que é a vida, o que temos para o café, todos os dias é apostar. Que sejam todas as fichas ou que deixemos pelo menos uma guardada, se tudo der errado, ousaremos apostar de novo. E, para o caso de ter esgotados todas as moedas, buscaremos novos meios de encontrar outras fichas e outro número que mereça a nossa confiança.
Já que as probabilidades não são lá muito do nosso lado, outra coisa que tendemos a fazer é culpabilizar o outro. De fato, arcar com todos os ônus é muito pesado para nossos ombros e, na falta de ombro amigo, que se dane o ombro que se virou para nós.
Quem sai perdendo é o amor. Quem leva a culpa é sempre o mais frágil, tipo bibelô de cristaleira e o mais dócil, como o cão fiel. E o pobre amor que não deu certo, como um bolo sem fermento, míngua dentro de nós. E queremos, claro, colocar a culpa no forno, na temperatura, nos ingredientes, mas nunca em nossa própria falta de atenção. A culpa nunca é do cozinheiro!
O que deve ser claro é que a culpa não é do amor, mas desse amor que falhou. Muitos outros virão. Vinícius de Morais já dizia que a vida era muito longa para se ter um amor só. Então, que aproveitemos todas as chances de apostar em uma nova receita e, quiçá, ver o bolo crescer.
De certo, se eu tivesse a receita mágica ou aquela mistura pronta do mercado para o amor eu a doaria. Sou adepta da campanha do mais-amor-por-favor e, espalhar corações suspirantes aos quatro ventos é uma proposta encantadora e irrecusável. Mas não sou a dona nem de uma coisa nem de outra, nem de tantos amores assim.
O que eu sei é que quando uma coisa dá errado, ela teve um tempo. Foi tudo cronometrado: há o aprendizado e todo caminho leva a algum lugar. Pode não ser onde queremos chegar, mas chegamos.
Se o amor falhou, a culpa não é de ninguém. Talvez ela nem exista, porque ele veio, cumpriu o seu propósito e foi-se. Em seu devido tempo cro-no-me-tra-do, como tinha que ser. Como a vida é. como uma planta ou uma receita. É tudo assim: início-meio-fim e prontacabô. Sem traumas, sem dramas, sem culpa.

Sem traumas e sem dramas é mais difícil, mas sem culpa é fundamental, porque daqui a pouco a roda da vida gira, será a sua vez de apostar de novo, e mais uma vez o coração vai tremer e vai – vamos – amar. 

Sucatamento



Imagem: Ramon Brandão


Cheiro de novo, perfume de loja
Motores acelerando a mil e correndo!
Todo amor novo é carro de concessionária:
Mal efetivamos e saímos desfilar.
Mas o uso cansa,
O reparo urge.
(Mecânico bom é aquele que manda flores!)
Na falta de atenção, estacamos.
Se estacionados por muito tempo,
Nenhum embalo restaura o fôlego.
(Até o boca-a-boca perde o gosto)
E outros modelos surgem
E outros olhos brilham
E as estradas perdem o rumo,
A gente vai a reboque,
Aceita o destino, o fado, o lado.
As ruas passam debaixo de nós
E o carro fica:
Fica comum, fica velho, fica chato, fica na pista, na faixa.
E o estacionamento que escolhemos com carinho
Vira pátio de leilão,
Vira cemitério de abandonos, decadências, desafeição.
Ficamos sós no pátio
E ali nasce a ciência:
Virou sucata toda aquela paixão.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Amores Bons



Para o casal que extrapola essência de um  amor bom!

Amores bons são os desordenados, os que enxergam belos horizontes até longe de Minas, os que deliram nos mares de morros, os que atravessam fronteiras.
Amores bons são aqueles ritmados, que tamborilam, que embalam, que levam todo o corpo em suas toadas, que roubam o pensamento e induzem às leves divagações, que chegam rápido e custam a passar.
Amores bons são aqueles emaranhados, de histórias enoveladas, de mil contos sem fins, de ricas rimas, sem métricas pobres, de versos, de prosas, de entrelinhas e sem pontos que coloquem um fim.
Amores bons são de nós, de marinheiros, de viagens, de planos e mapas, de volta ao mundo sem sair do lugar, de vídeos e pipocas, de músicas e silêncios que afagam o ouvido, aquecendo cada centímetro do corpo que nem sente frio.
Amores bons espalham-se pelo mundo. Encontram-se nas esquinas, estampam-se pelos muros. Giram nas cabeças de lua, girassóis alegres mesmo em dias de chuva.
Amores bons são de sorrisos e de lágrimas, de apertos e suspiros, são aqueles que acrescentam rumo mesmo quando parecem perdidos, são cheios mesmo quando não trazem nada nas mãos, porque o que está cheio é o coração.
Amores bons saltam dos livros, rompem com os poemas, fogem de toda ficção e vem pousar, livres, na ponta dos dedos, nos ombros, no galho da árvore do nosso quintal, vem morar com a gente, fazendo festa em arrebol.

Amores bons navegam pelos mares rumo ao poente, recriando, se precisar até uma nova direção, porque são reais, porque são literais porque são.

A Insônia do Dia


Engana-se quem acredita que eu, insone, só habito a madrugada. Na verdade pouco deles faço das horas andurriais a minha morada. Desfio-me mesmo é à luz do sol, vagando pelos dias, procurando por meus melhores momentos.
Por mais que eu faça das madrugadas o meu refúgio, o meu aconchego e que me digam insone, é à noite, enquanto todos dormem que encontro o equilíbrio, que toco o limite tênue de minhas loucuras com a sanidade que tanto necessito e que pouco busco, confesso.
Talvez seja a madruga a minha hora mais desperta.
Mesmo que pareça acordada é no meio do dia, quase todo dia, que estou mais insone: recuso-me a cair no sono profundo da mesmice cotidiana. Recuso-me a dormir o sono da rotina.
É ao meio-dia que estou mais insone. Não pisco. Não descanso. Entrego-me às observações e análises, entrego-me ao não-querer, ao não-aceitar, ao exercício de meu direito ao rompimento.
Em tempos em que as pessoas adormecem em suas vidas e esperam passar todos os ventos, gasto minhas horas em contemplação e reflexão. Sentinela das paisagens, falcão que voa pelo asfalto quente, seco, sedento de chuva de inspirações.
À noite, sou de repousos. Sou de depuração. Devagar vou digerindo todo o cansaço adquirido ao longo do dia, em minha insônia. E, mesmo sem pregar os olhos, descanso.

Curioso é saber que mesmo quem está ao meu lado pouco nota. No fim, ninguém repara na insônia que se manifesta ao longo do dia.

Ineditismo



Desconheço essa língua
(E a sua língua).
Os sinais já não me dizem tanto.
Em outros tempos (vidas?) eu os entenderia.
As placas parecem indicar outros rumos.
Atalhos errados,
Estradas sem acostamento.
Não há tempo para pausas:
Caminhar, caminhar, sem saber onde chegar.
Não compreendo a cidade,
Não compreendo seus trejeitos,
Alimento-me com o novo,
Com aquilo que inaugura-se em mim a cada dia,
E aprendo a degustar o inesperado,
Sentindo cada sabor.
(Ineditismo)
Na pressa embrulho (me) para viagem:
Há lembranças para se consumir
E muitas outras para se construir.
Tudo passa, pouco para,
Pousa só para dormir,
Extraindo da terra que sonhei
Frutos e sementes maduros e verdes
Como os olhos que chegaram aqui:
Crus de toda paisagem,
Ávidos por novos contornos,
Tomando fôlego para um mergulho

Nos limites das fronteiras recém-atravessadas.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Fases



Segurava seus desejos na mão como se fosse a própria lua. Ela tentava controlar as suas fases. E oscilava tanto quanto as marés.
Dona de muitas vozes entregava-se nos silêncios que fazia. Não sabia dar-se às indiferenças e condenava-se sempre ao mais profundo dos calabouços todas as vezes que tentava dominar as suas palavras. Ré confessa, agora deixava os pensamentos saírem pela boca, fosse o resultado qual fosse.
Se precisasse tecer uma defesa trabalharia em cima da única coisa pela qual tinha certeza: nunca causara o mal de propósito. Nunca derramara a última gota consciente. Nunca desviava um caminho sabendo que o atalho era falso. Isso não.
De uma leveza que lhe era peculiar, preferia arcar com as dores dos outros – causando muitas em si mesma – do que correr o risco de ferir quem quer que fosse.
Encolhida em seu canto contabilizava os destroços que encontrava ao seu lado. Quantos deles foram resultados de suas ações? Quantos navios naufragados por seus ventos? Estaria ela dando-se um crédito maior do que o real ou era mesmo de uma natureza intempestiva, dessas que pode destruir sem perceber?
Em suas muitas fases, cabiam-lhe mais as pressas e belas violências das cachoeiras, as inconstâncias e insatisfações das marés, os mistérios noturnos dos rios profundos ou era só um lago calmo, quase adormecido que sonhava em ser mais?
Segurando as suas vontades como se fossem as fases da lua, ela esperava cada uma delas passar. Às vezes engolindo a seco o sabor que nunca experimentara, outras tantas deixando de lado, acostumando-se ao nada e ao deixar-se-ir-das-horas.
Era lua, era de fases, era ré e inocente ao mesmo tempo, tentando equilibrar-se em sua existência ora de sol, ora de lua, mas sobretudo de luz. E pouco interessava se era ouro ou prata. Brilhava. E contentava-se com isso. Contentava-se com o fato de existir.

Inocente das intenções, mas testemunha de crimes. Portadora de feridas que lambia inquieta. Insatisfeita com o que tinha, acomodada com o que não alcançava. Delicadamente áspera, com tantos espinhos quanto perfume. Desesperadamente esperançosa. Um ser de lua em busca da compreensão de si e do mundo, que perdia-se nas noites, contendo em suas mãos seus desejos, que passariam, como todas as fases.

Membro Fantasma



Mesmo depois de a porta ter se fechado sem chances de ser reaberta a sensação de que tudo estaria como antes continuava. Os planos abortados, rasgados, caídos pelo chão ainda podiam vibrar. Ainda eram sentidos como se estivessem no mesmo lugar.
As fotos partidas ao meio ainda pareciam respirar, uma sobrevida fantasma que teimava em arrastar as suas correntes pelos corredores inexistentes da casa.
A falta dela era como a falta de um membro que, amputado, fazia falta agora, mas que deveria ser, em breve, substituído por uma conformação, por uma adaptação de quem ficou. A lei da vida é implacável e manter-se de pé e firme é essencial.
Quando ela atravessou a porta amputou-lhe o peito, arrancando o coração que ainda pulsava. No lugar dele um vazio, uma angústia, uma dor lancinante, que nem todo analgésico do mundo conteria.
E verteram-se rios salgados e cristalinos, transparentes como a grande lacuna que se fez no peito. Rolaram cachoeiras de sonhos despedaçados. E o tempo que corria acelerado parecia parado, porque a dor não curava. A ferida não cicatrizava. E a vida seguia sem ser vivida.
Tempos depois um coração tímido batia, um coração meio fantasma, um que era sentido no lugar daquele que havia sido arrancado e ousava voltar a bater, reconstruindo-se, revivendo-se, dando-se novas habilidades, desfazendo-se das memórias e tornando-se mais habilidoso, mais adaptado às dores.

Aos poucos deixava de ser fantasma, abandonava as correntes, parava de atravessar as paredes e assumia-se como nunca havia deixado de ser de fato: de carne, sentimentos e sangue, de vida.

Caos II




Cada qual com seu caos
E cada caos com seus desesperos
E atropelos.
Que sejamos todos presos nesses emaranhados de novelos,
E cada um que se ajuste à História:
À minha e à sua, um dia, quem sabe, à nossa.
Sim, um dia, porque é questão de alma:
Ou ela se acalma ou se acostuma...
Mas o caos...
Cada um tem o seu e o aceita como pode.
E de cada taça, um gole,
De cada gota, uma tempestade.
A margem, de erro ou de rio, só o tempo dirá.

E é só com ele que vamos nos acertar.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Universo Onírico




Dentre as tantas coisas que sempre quis colecionar e as tantas que colecionei reservei espaços para os sonhos, minha especialidade. Por eles dei o sentido necessário à minha vida. Como se fossem o ar que eu respirava.
Muitas vezes encerrei-me em meu mundo interior, ocupada de sonhar por longas horas, acordada, avoada, distraída, sendo tantas outras, construindo outros mundos, outras cores, outros sopros de ventos, outras moradas de paredes que desafiavam qualquer engenharia.
Doía-me só o despedaçar dos sonhos caídos ao chão. Pulsava mais forte o sangue que pingava dos dedos que tentavam ajuntar os seus cacos. Sobressaiam-me os desesperos alados daqueles Ícaros que saiam pelas janelas que eu me esquecia de fechar e nunca mais voltavam... restavam só as suas lembranças que dividiam entre si as sensações ao mesmo tempo doces e amargas, de um querer revivê-los e uma repulsa em saber como acabariam.
Não atrevi a desejar muita coisa em meus dias. Cabia aos meus pés o caminho, aos meus olhos, o sonho. E sentia-me confortável nessa empreitada. Sonhadora profissional. Descobridora de figuras em nuvens. Desenhista de sorrisos nos vidros embaçados. Bailarina das madrugadas e dos sons mudos.
Nunca entendi o que os outros chamavam de viver. Essa correria desenfreada, essa falta de olhares, de toques, de levezas. Sempre fui de sutilezas. De dias coloridos. De gentilezas. Por mais que me dissessem que era preciso acordar, eu não dava ouvidos. Não me agradava a ideia de abandonar meus planos. Não era por falta de experimentação. Ao contrário. era justamente por ter experimentado o mundo real, cru como se apresentava que optei pelos sonhos.
Desenvolvi um jeito próprio de ser de onde nunca fui. De ter o que nunca alcancei e de identificar-me com o que nunca existiu. E não era fuga. Não era sequer simples. Exigia uma complexidade tamanha fazer parte de um mundo e não se achar nele. Ainda é complexo. Mas agora a tranquilidade de quem está acostumada com os trâmites paira.
Toco, com minha poesia, tudo o que não é meu, mas passa a ser por apropriação. Tenho um eu-lírico mais atrevido que eu mesma, mais desbravador, mais possuidor de tudo o que quer, pois cria seu mundo.
Permiti-me um amar sem amar, como o poeta que finge. E a alma de poeta nunca abandona um coração que sonha. E os amores, sentidos ou não, serão sempre amores e nos permitem as mais belas e tristes e intensas colocações e esperanças. Como o se o tangível jamais estivesse ao alcance de meus dedos. Como se um dia Tântalo pudesse se saciar ou Sísifo descansar. Como se fosse possível viver experimentando o que nunca se experimentou. Como se a água continuasse a deixar a boca seca. E deixava. E deixa, às vezes.
Talvez seja por isso que me acostumei a sonhar de modo livre. Sem o menor dos pudores. E sem a menor pretensão de alcançar todos esses sonhos. Eram quase que colecionáveis. E junto deles eu guardo cartas, músicas, cheiros, sensações.
Não me isento da vida só porque sonho. Sonho justamente para suportá-la. Para ter forças nos ombros e coragem nos pés. Sinto cada curvo que dobro. Engulo cada novo sabor e cuspo longe todos os sapos que me são oferecidos. Em alguns casos cuspo fogo. Dragão vermelho dos contos de fada, amansado pelas noites de lua e cativo em torres altas de castelos fortes.
É uma vida mais cheia de fantasias. Não menos dura, não menos real, mas um pouco mais enfeitada, tendendo a ser mais otimista sempre que possível, mas permito as boas doses de realismo e um pouco da água do poço fundo do desânimo em tempos mais difíceis.
Tenho sonhos desertos ou de desertos. Longínquos. Solitários. Outros de oásis, de festa. De tendas ricas. De paisagens tão misteriosas quanto encantadoras nas quais não me canso de olhar e buscar. Das quais nunca me canso de sonhar.
Tenho sonhos como uma mania insaciável de construir. Construo os mundos como o poeta aos versos. Construo mundos e os venero e anseio por não abandoná-los e desejo poder tocá-los como música harmoniosa.

Tenho os sonhos como companheiros eternos e inseparáveis, que me dão mais vida à vida e que só ousarei me separar quando os olhos fecharem para não mais se abrirem. Quando eu me espichar pelo vão do não-sei-para-onde-vou. E quando, enfim, estiver encerrada a minha participação nesse mundo, que só é suportável porque me permito ser um universo onírico e paralelo.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Para Todo Dia




Fosse quarta-feira e o ritmo seria outro. Na segunda, o pé estaria no freio, ainda preguiçoso. A mão estaria largada, tateando em busca do café-nosso-de-todo-dia. Mas era sexta. E apesar de todo o cansaço da semana, das correrias, dos ônibus perdidos, das horas atrasadas, das reuniões intermináveis e enfileiradas de segunda a quinta, como as filas das crianças na escola, a aceleração era total.
Poderia ter feito versos. Poderia ter ouvindo uma canção. Preferiu pensar em todas as palavras que poderiam ser escritas e endereçadas, mas não o seriam. Gostava de escrever essas longas cartas que não eram entregues a ninguém.
Jogou-se no sofá da cafeteria como se fosse o de sua própria sala. Afundou-se no meio das almofadas, sacou o caderninho e anotava tudo. Observava tudo. Com um som alto nos fones, perdia-se na contemplação do vai e vem das pessoas.
Gostava de ir ao shopping. Não de ir às compras, mas de sentar ali, na poltrona que já era quase sua e passar horas olhando as pessoas. Gostava de tentar imaginar o que se passava nas tantas cabeças que entravam e saiam das lojas, que se escondiam atrás das sacolas com produtos caros e que nem sempre eram necessários a todas aquelas pessoas.
Gostava, na verdade, de sentir-se desligada de tudo aquilo. Como se fosse só mais uma expectadora do mundo, uma fiel seguidora das histórias, das mil histórias sem fim que era a vida.
E sempre se pegava imaginando os fios que ligavam as pessoas, sem o menor dos sentidos lógicos, sem nenhuma outra explicação que não fossem um capricho dos novelos das Moiras.
Em dias acelerados como essa sexta-feira, gostava de cafés gelados, de energias revigorantes e refrescantes que a permitiam mais lucidez ao olhar para cada passo das pessoas e lhe permitia examinar a sua colocação no meio de todo aquele mar de histórias interligadas.
Pegava um ou outro fio e ia tateando para encontrar o exato momento em que o cruzamento acontecia. Encontrava, mas a lógica lhe fugia. E dessas experiências de pausa e observação tirava a sua receita para todo dia, de meditar, de concentrar-se nos acasos interessantes que os caminhos, suas voltas e atalhos proporcionavam. E anotava em seu caderninho cada um dos seus pensamentos. Como se pudesse compor um livro dos dias. Um livro de horas. Um livro de intermináveis histórias sem fim, com personagens que iam e vinham a cada nova página lida, escrita, reinventada.

Para todo dia, uma nova anotação. Para todas elas, uma dose de contemplação. E fazia-se assim, um pouco dona de tudo o que seus olhos viam e tocavam sutilmente pelo correr das horas que mergulhavam em mais uma taça de café gelado.

Às Cegas



É como descobrir-se sem que se conheça. É domingo de sol sem nada para fazer. Ou com tantos afazeres que vira segunda-feira. É sentir-se às avessas e nada poder fazer.
É uma sensação de cansaço que beira a desilusão, que beira solidão, que beira o desconhecido e que entontece qualquer um. Que se entranha nos pensamentos e esvazia as ideias, que tira o ar, que deixa o último fôlego se esvair, assistindo a tudo com frieza de concreto.
É como um feriado em dia de domingo com aquela sensação de que não valeu. Parece pênalti roubado, folga desperdiçada, chuva que cai depois que se lava todas as janelas mais altas. É um desânimo interminável que precisa ser vencido.
É um abismo com fundo. Mas com tantos riscos quanto o passo em falso pode assegurar quando o sem fundo é a garantia. É a certeza do baque forte que quebra tudo, desmonta sonhos, desloca pensamentos.
É uma incerteza de se existir ou viver. É a incerteza de se entender a diferença entre uma coisa e outra. Ah, quantos existem e não vivem... e quantos vivem tanto que chegam a incomodar quem só existe!
É a dúvida de não saber-se ser ou estarrecer. É sentir-se no meio do mundo em queda e não se reconhecer. É não ter para onde correr, mas ainda assim seguir e buscar forças para não desistir.
Acordar todos os dias é um exercício diário de pequenas conquistas, pequenas vitórias: sobre o despertador, sobre a vontade de ficar na cama, sobre o horário que passa voando, sobre cada decepção, sobre os maus agouros, sobre toda a gente que está ali só para servir de obstáculo.
Acordar todas as manhãs é um exercício de fortalecer-se sem esquecer das delícias que se alcança quando cada um desses desafios é ultrapassado.
Em tempos de cansaços, de muitos motivos para desistir, ainda consigo enxergar que o mundo contém todos os desdobramentos possíveis, para o bem ou para o mal, e que mudar os rumos ou manter-me de posse da mesma cópia feita de um original desigual depende mesmo é de minhas vontades.
Em tempos em que me sinto abstrata, presa em concretos e conceitos que parecem limitar, busco as beiras, as fronteiras, os liames e teimo em passar por cima ou por baixo das cercas que insistem em reduzir meus pensamentos.
Já não é de hoje que tentam me calar, mas ainda há o grito que posso dar, ainda há a angústia em que posso (quase) afogar-me e experimentar umas poucas gostas de amargo, só pelo prazer do diferente, sem deixar me abater completamente, sem desistir de ver ao chão cada caco desses espelhos distorcidos.

Não é de hoje que há uma busca por um não sei o quê e talvez esse seja o motivo do falso cansaço: o não saber. Uma busca às cegas tem seus prejuízos, mas uma certeza de se achar soa como um realejo ao longe, que muito mais do que a sorte, aguarda a mão que lhe dará corda e libertará seu som, leve como as notas de uma harpa suave. E os pés poderão dançar sua música. E aceitar a sua sorte. Acreditando ou não nela.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Fado Doido




Enquanto contava as horas que se estendiam e arrastavam em descompasso com o escuro da noite que se dissolvia em madruga, guardava beijos nas conchas das mãos, esperando quem os recolhesse.
Construindo castelos de poeira nas bordas das páginas dos livros lidos e daqueles que foram comprados e esquecidos, parte da velha mania de colecionar retângulos coloridos na estante pesada do canto da sala.
Mesmo nas madrugadas longas, enchia as mãos de sol. Esfarelava o brilho em pequenas fagulhas que soprava pela janela, estrelando os céus solitários que entravam por outras janelas insones.
Desencontrava-se de si mesma em pensamentos soltos e os escrevia em blocos de papel que se perderiam na próxima estação, que nunca ganhariam espaço, nunca seriam conhecedores da primavera.
Era um rio de sentimentos aprisionado em montanhas tão latas quanto seus sonhos, mas não sabia o caminho dos mares e morria um pouco mais dentro de si a cada dia. E calava as palavras. E as engolia. E quase se afogava em seu vale de lágrimas e contas perdidas.
Tocava o céu com seu peito aberto, arrepiado pelo vento, olhos atentos a todos os movimentos que só se podiam sentir. Via tão além e se distraia que o perto não lhe era conhecido: fado doido de quem se encanta por tudo o que vê e com pouco se contenta.
Se voasse seria uma gaivota, que troca os céus por mergulhos, que desafia os limites e se diverte em rasantes.
Se fosse peixe seria o de um aquário, que passa os dias esperando o nada, sem saber de nada, só sonhando com as correntezas que experimentou há muitas luas.
Inquieta, poderia ser faísca solta de fogueira, que se lança atrevida, mas cansada, apaga e se recolhe em cinzas.
Fosse palavra, seria tantas que não caberia em uma única língua e léxico nenhum conteria toda a sua essência e nenhuma gramática a arranjaria, nenhum tradutor a dominaria.
Sendo aquela que mata um leão por dia, não se daria por satisfeita e amansaria também as onças e se ajuntaria  a elas, aprendendo a arte de ser livre e feroz e sagaz e paciente quando necessário.
Se fosse silêncio seria aquele que paira sobre os cetins e tapetes antigos, das terras tão misteriosas quanto longínquas, seria véus espalhados pelo ventre á espera de mão que os soltasse.

Se fosse tudo isso, ainda assim se perderia e nenhum sentido bastaria, porque a busca e os desejos eram tudo o que a movia e entregar-se não fazia parte dos planos. Mesmo quando quase enlouquecia.

domingo, 5 de outubro de 2014

Para Sempre é Pouco




Aos quinze é tudo tangível. É tudo simples demais e complexo demais.
Aos quinze, o mundo é um paradoxo. E toda gota é a d’água e transborda até em copo vazio. E toda madrugada é longa demais para as lágrimas e pequena demais para os poucos minutos de sono antes do raiar do dia.
Todo dia é de folia, toda flor tem cheiro de alegria e toda chuva parece que nunca tem fim. E os domingos são chatos. E nas segundas de prova a preguiça comanda e o branco não sai da cabeça.
Aos quinze, a gente jura amizade eterna e diz que nunca vai se separar. Diz que amiga é irmã e descobre que algumas são, outras nunca foram.
Aos quinze, ainda teimamos em acreditar no príncipe encantado, mas já pensamos que ele tem mesmo é a cara do menino que esbarramos no outro dia, sem cavalo, sem capa, mas com um sorriso de tremer as pernas.
Aos quinze descobrimos nossos limites e juramos solenemente que vamos morrer ao final do filme “se tudo der errado” e não morremos. Juramos que a vida vai ser só de curtição para sempre.
Fazemos promessas de morar sozinhas ou com a melhor amiga. De ter as roupas mais maneiras. De ir em todas as festas e quer logo chegar aos 18.
Aos quinze, tudo o que queremos é que a vida passe, que os sonhos se realizem, que a noite seja breve e que aquele amor seja para toda vida.
Aos quinze, a gente sonha quando dorme, mas o bom mesmo é aquele sonho que se tem acordada, jogada na cama, no meio da tarde, quando contávamos as horas como se elas nunca fossem fazer falta.

Aos quinze, o tempo não para, mas também não passa. E a longa duração de tudo é sempre pouca e toda a nossa certeza é que o pra sempre, para nós, é pouco. E é, porque aos quinze, temos todo o tempo do mundo. Por mais que mudem alguns personagens.