Visitas da Dy

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Cigana



Acreditando que os olhos da menina eram mesmo de cigana e que seus dedos pequenos sabiam percorrer as linhas das palmas das mãos alheias revelando futuros, ele pediu-lhe que revelasse sua sorte.
Ela, que sorria com os mesmos olhos castanhos-quase-encantados, disse que não dominava essa arte, mas que a brincadeira de prever histórias e imaginar futuros fossem na palma da mão ou colocando algumas cartas sobre a mesa seria interessante.
Ambos estavam descrentes das revelações, mas lançaram-se na empreitada. Era um modo de passar o tempo sem as seriedades que a vida exigia naqueles tempos e apreciar uma companhia agradável.
Ela percorreu o indicador pela palma da mão dele como bússola em busca do norte, mas sem sucesso. Não sabia brincar de invencionices. Além do mais, constrangeu-se com o calor daquela mão estendia quase como um convite a ela. Não sabia o que fazer. Nem o que pensar. Tampouco conseguia se concentrar em alguma coisa.
Como se ela própria estivesse ali, na palma daquela mão, apequenada, não se encontrava mais em lugar algum e salvou-se saltando pela borda e agarrando-se a um pedaço de papel pousado na mesa. Fez dele sua estratégia de fuga: desenhou cartas de um baralho.
Abandonou a quiromancia e mergulhou na arte da taromancia, igualmente desconhecida, mas uma alternativa para se ganhar tempo enquanto pensava no que dizer para quebrar o silêncio.
Quase terminando com suas cartas, percebeu que não se constrangeu com o silêncio e fez dele as previsões que precisava, mordendo os lábios para se centrar e escolher as palavras. Às vezes apoiava a mão no queixo, mirando seus desenhos como se fossem, de fato, um tarô, e como se ela o soubesse ler.
Assumindo o papel que lhe havia sido atribuído, com ares de cigana alegre e consciente dos segredos revelados nas cartas, sorriu um riso largo que ultrapassou as suas próprias margens, enchendo os espaços vagos da sala, esparramando-se pelo sofá, escondendo-se atrás das cortinas, brincando com a luz do abajur.
Era um quadro bonito de se ver. Ela parecia mais leve que o ar e dançava com o silêncio, como se fosse possível um ser imóvel, em sua cadeira, romper a quietude sem mover mais do que o ar que respirava. Sob esse olhar mais atento que expressivo, sem esticar as dobras do tempo ela desfiou sua leitura.
Vejo sonhos. Sonhos de manhãs comuns. De um bom dia atrás do outro, ora com graça, ora de protocolos, sempre sinceros. E vejo aventuras. Dessas que acordam às seis da manhã, junto com o despertador e que, às tardes, se despendem das responsabilidades e se arrepiam quando tocadas pelo possível.
Vejo olhos que se fecham para ler letras miúdas ou para tocar miragens, que trazem histórias indecifráveis e vontades incompletas e abandonadas. E força. Uma força que luta contra todo o desgosto e que dura mais que a chuva, mais do que um compromisso de agenda, mais do que um suspiro longo.
E vejo que há mais do que se espera para os dias de feira. Há mais do que as alegrias dos dias santos, porque é tudo legítimo. Pouco importa se há aqui reveladas intenções ou forças ou projetos ou histórias ou futuros. Trata-se de um complemento de virtude que é próprio de quem às vezes se sente pequeno, mas que é grande – ou aprendeu a ser.
O que eu vejo são cafés: dos simples e corridos pelas manhãs aos longos, intensos e sem pressa de amantes e apreciadores. Vejo que há um tudo de muito maior no que se toca, se cria e se deseja, a despeito dos ritmos desestimulantes que soam aos quatro ventos.
Há aqui, escapando pelas cartas, destinos que não podem ser previstos em suas conclusões, mas cujos anseios são sempre os mesmos, não importando se são os meus ou os seus. Somos todos seres com uma sina dupla: amar e escrever.
Há quem ame com a vida toda e já se dá por satisfeito.
Há quem escreva firme em linhas poéticas ou a própria história.

O fato é que, por essas ou outras cartas, o que importa é só o que se faz com dois verbos: amar e escrever. E, eu, cigana, escrevi essa previsão que me é o que tenho de maior agora. Todo o resto lá fora, me é menor e não importa.

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