Poderia
acreditar em tudo e em qualquer coisa.
Poderia
acreditar que estava escrito. Reduzir todo um mundo de possibilidades em um
único verbo como os árabes. Algo com requintes cruéis de uma imutabilidade que
sugeria uma aceitação, quase um fatalismo, mas que com boa dose de romantismo e
poesia, soaria bonito.
Poderia
acreditar em seus sonhos com desconhecidos como se fossem presságios. Poderia
esperar encontrá-los a cada esquina e que os convites para dois dedos de prosa
fossem se realizar e que dali sairiam amizades duradouras.
Poderia
acreditar em trajetórias de vidas passadas. Almas que estão predestinadas a
viverem juntas para sempre. Que se encontrariam de qualquer maneira, que se
completavam.
Poderia
acreditar nos anúncios de jornal que garantiam a satisfação, nas promessas de
empréstimos a juros baixos, no Coelhinho da Páscoa e no Papai Noel.
Poderia. Mas
não acreditava. Olhando a foto que ainda teimava em guardar na gaveta,
lembrou-se de como tinha sido até chegar naquele momento congelado. Gostava de
fotografias – reveladas – porque tinha exatamente essa sensação de perpetuação.
O tempo ali, parado, capturado, pronto para ser revisto – quase revivido – a
hora que ela quisesse.
Ainda ouvia os
sons daquele dia quando fechava os olhos. Os sorrisos soltos pareciam dançar.
As mãos pareciam ter a certeza do trajeto que fariam. Fosse um quadro, teria a
certeza de que fora pintado de propósito, com todos os detalhes calculados. Mas
era uma fotografia. E ela quase ousava dizer que seria um esboço de perfeição.
Talvez fossem
aqueles três segundos quase mágicos que todos vivem um dia e poucos sabem. Ela só
sabia agora, muito tempo depois e o contemplava quase devota.
Sacudiu a
cabeça, afastou para longe o som dos pássaros e das vozes que estavam ao redor
naquele momento quase mágico. Espantou aquela música que escolheu como trilha
sonora e voltou-se para a gaveta.
Havia na
gaveta uma bagunça típica de gavetas onde se guarda de tudo. Ali não era um
lugar exclusivo para suas fotos ou lembranças, mas um amontoado de tudo. Era
quase o seu próprio refúgio. Suas relíquias a compunham e a davam um ar quase
medieval quando olhava tudo aquilo com certa devoção (tão ardente quanto quando
olhava para a foto).
Em pedaços de
papel, poemas. Amores, um adeus, cacos, desenhos, beijos, cheiros, abraços,
incensos, origamis, lágrimas. Tudo embrulhado em lembranças. Tocava cada objeto
e sorvia deles saudades que eram semeadas em seu peito e floresciam pelos
olhos, que, generosos, vertiam cristais-flor.
A gaveta era
um mundo. Era ela no mundo, eram seus planos. Suas quimeras desfeitas,
atropeladas pelo tempo. Eram os motivos pelos quais ela poderia ter ficado ou
partido, eram suas dúvidas, suas dívidas consigo mesma. A gaveta era uma prisão
em que ela sentia prazer de ficar.
Ainda
relembrava exatamente o som das palavras escritas sugerindo passados
ancestrais. Ainda sentia o perfume em sua cabeceira, de Orientes que desejava tocar
e outros que desejava traçar.
Dentro da
gaveta guardava suas dores que a faziam contorcer-se depois da fuga de uma
decisão difícil. Guardava preces não feitas, interrompidas pelo sono ou
abandonadas por julgar que não merecia mais o que pedia.
Dourava pílulas
que agora engolia. Guardava suas desistências, seus desânimos, alguns fricotes,
alguns dias menos coloridos e os multicoloridos. Guardava a música favorita, o
primeiro poema, o anel perdido, o recorte de revista.
A gaveta era
um tesouro, era ela. Era onde se encontrava e se perdia para se reencontrar e
revi(vi)a a vi(d)a que escolhera, como se fosse plateia de si mesma, escritora
de seu roteiro, criatura-criadora, ser viv-ente, que como todos os outros que
conhecia, precisava aprender a (res)guardar-se de vez em quando. Por isso
escolhera a gaveta como seu mundo paralelo.
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