Visitas da Dy

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Quimeras




Poderia acreditar em tudo e em qualquer coisa.
Poderia acreditar que estava escrito. Reduzir todo um mundo de possibilidades em  um único verbo como os árabes. Algo com requintes cruéis de uma imutabilidade que sugeria uma aceitação, quase um fatalismo, mas que com boa dose de romantismo e poesia, soaria bonito.
Poderia acreditar em seus sonhos com desconhecidos como se fossem presságios. Poderia esperar encontrá-los a cada esquina e que os convites para dois dedos de prosa fossem se realizar e que dali sairiam amizades duradouras.
Poderia acreditar em trajetórias de vidas passadas. Almas que estão predestinadas a viverem juntas para sempre. Que se encontrariam de qualquer maneira, que se completavam.
Poderia acreditar nos anúncios de jornal que garantiam a satisfação, nas promessas de empréstimos a juros baixos, no Coelhinho da Páscoa e no Papai Noel.
Poderia. Mas não acreditava. Olhando a foto que ainda teimava em guardar na gaveta, lembrou-se de como tinha sido até chegar naquele momento congelado. Gostava de fotografias – reveladas – porque tinha exatamente essa sensação de perpetuação. O tempo ali, parado, capturado, pronto para ser revisto – quase revivido – a hora que ela quisesse.
Ainda ouvia os sons daquele dia quando fechava os olhos. Os sorrisos soltos pareciam dançar. As mãos pareciam ter a certeza do trajeto que fariam. Fosse um quadro, teria a certeza de que fora pintado de propósito, com todos os detalhes calculados. Mas era uma fotografia. E ela quase ousava dizer que seria um esboço de perfeição.
Talvez fossem aqueles três segundos quase mágicos que todos vivem um dia e poucos sabem. Ela só sabia agora, muito tempo depois e o contemplava quase devota.
Sacudiu a cabeça, afastou para longe o som dos pássaros e das vozes que estavam ao redor naquele momento quase mágico. Espantou aquela música que escolheu como trilha sonora e voltou-se para a gaveta.
Havia na gaveta uma bagunça típica de gavetas onde se guarda de tudo. Ali não era um lugar exclusivo para suas fotos ou lembranças, mas um amontoado de tudo. Era quase o seu próprio refúgio. Suas relíquias a compunham e a davam um ar quase medieval quando olhava tudo aquilo com certa devoção (tão ardente quanto quando olhava para a foto).
Em pedaços de papel, poemas. Amores, um adeus, cacos, desenhos, beijos, cheiros, abraços, incensos, origamis, lágrimas. Tudo embrulhado em lembranças. Tocava cada objeto e sorvia deles saudades que eram semeadas em seu peito e floresciam pelos olhos, que, generosos, vertiam cristais-flor.
A gaveta era um mundo. Era ela no mundo, eram seus planos. Suas quimeras desfeitas, atropeladas pelo tempo. Eram os motivos pelos quais ela poderia ter ficado ou partido, eram suas dúvidas, suas dívidas consigo mesma. A gaveta era uma prisão em que ela sentia prazer de ficar.
Ainda relembrava exatamente o som das palavras escritas sugerindo passados ancestrais. Ainda sentia o perfume em sua cabeceira, de Orientes que desejava tocar e outros que desejava traçar.
Dentro da gaveta guardava suas dores que a faziam contorcer-se depois da fuga de uma decisão difícil. Guardava preces não feitas, interrompidas pelo sono ou abandonadas por julgar que não merecia mais o que pedia.
Dourava pílulas que agora engolia. Guardava suas desistências, seus desânimos, alguns fricotes, alguns dias menos coloridos e os multicoloridos. Guardava a música favorita, o primeiro poema, o anel perdido, o recorte de revista.

A gaveta era um tesouro, era ela. Era onde se encontrava e se perdia para se reencontrar e revi(vi)a a vi(d)a que escolhera, como se fosse plateia de si mesma, escritora de seu roteiro, criatura-criadora, ser viv-ente, que como todos os outros que conhecia, precisava aprender a (res)guardar-se de vez em quando. Por isso escolhera a gaveta como seu mundo paralelo.

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