Fim de tarde.
Início de noite. Esses limiares nunca foram muito bem entendidos ou definidos
por ela. Também nunca foram respeitados, como as horas. Ah, e quantas horas ela
já não tinha perdido! Não conseguia fazer as pazes com o relógio.
Nos últimos
dias já não conseguia fazer as pazes com o tempo, que gritava meio rouco em seu
ouvido, dizendo que passa acelerado e sem pedir permissão. Esse tempo que
mastiga planos, que não espera um novo amanhecer, que é implacável e quase
cruel.
Ela não
aceitava o tempo-medida, sem medida certa para as pessoas. E talvez até para
ela mesma. Era uma não-aceitação fundamentada especialmente no que não
entendia: o tempo, às vezes, era generoso às avessas. Deixava-se levar por quem
parecia não o merecer e se extinguia daquelas pessoas que deveriam merecer a
eternidade.
Tão difícil
pensar que se poderia julgar quem merece ou não mais tempo. Mas ela, agora,
pensava que tinha essa função. Mentalmente fez uma lista de quem poderia ter as
horas extintas e quem deveria, por sorte, ter algum acréscimo de vida.
Politicamente correta, pensou em eliminar do mapa as pessoas más, que promoviam
guerras, fomes e toda sorte de mazelas. Muito tendenciosa, doaria tempo àqueles
a quem amava e a rodeava.
Tola demais!
Gastou seu tempo e sua energia em empreitada já fadada ao fracasso. Mas era uma
tentativa de acalmar seu coração agalopado pela consciência do fim de tudo e
todos.
Sentia muito.
Vivia à flor da pele. Apesar de não ser uma mulher alta, em sua mediana
estatura cabia um coração largo, amplo, com bastante espaço para o amor. E
cultivava esse amor como o jardineiro cuida de uma flor rara, com atenção,
dedicação, sinceridade.
Muitas vezes
ela se permitia a pensar em como era sentir tanto. Chegava a pensar que sentia
mais que os outros. Mas se convencia que amor não se mede. E para aliviar, só
sorria.
Em finais de tarde
ou início de noite como aquele em que se experimentava as quatro estações do
ano em um único dia, ela se permitia sentir um pouco mais e mais, permitia-se
mostrar tudo o que lhe agitava o peito e, se não falava, escrevia, se não
escrevia, chorava.
Depois que o
céu desabotoou as suas nuvens e a chuva renovou tantas esperanças enquanto
escorria pelas escadas e calçadas das ruas que ela passava, tomou um bocado da
água nas mãos. Fez poça d’água, lago transparente afogando a sua linha da vida.
Tinha na palma das mãos um novo aprendizado: seremos afogados pelas águas do
tempo. Teremos nossas linhas da vida, do amor, do sucesso, paralelas, retas ou
curvas, todas afogadas, aos poucos apagadas, esquecidas.
Naquele dia,
ela experimentava, em si mesma, as medidas dos amores que carregava.
Experimentava o que era escolher quem levar pelos seus dias afora e teve a
certeza de que a-m-a-v-a.
Ela amava.
Isso era o que sabia e o que as palavras não diziam. Poderia se esforçar
procurando em todo o dicionário e não encontraria em todo o léxico algo que a
expressasse.
Ela chorou.
Feito criança perdida. Feito um desconsolo. Até soluçar, não se importando com
onde estava, com quem a olhava, com nada mais além do que sentia. E o céu
desabou mais uma vez, em chuva fria, cristais transparentes anunciados pelas
vozes dos trovões, talvez em solidariedade, talvez para misturar-se às lágrimas
dela e mostrar que, mesmo que parecesse, não estava sozinha.
Poderia ter
sido, talvez, só uma coincidência ou um capricho de Deus, mas por um segundo
pensou que o céu chorava com ela, arrependendo-se de ser a morada de pessoas
que mereciam mais tempo ou alegrando-se por receber preces que seriam
atendidas. Ela já não sabia muito bem o que pensar do céu. E nem queria pensar
nisso. Agora, só chorava.
Aquelas
lágrimas já tinham sido contidas, mas fizeram-se queda livre da nascente
castanha que observava tudo e pouco falava, sofrendo da falta de palavras que
sequer lhe era habitual. Ela chorou e lavou a alma e descobriu que o amor é
saber-se finitamente infinito, voltou a crer no impossível, renovou a fé e
sorriu.
Descobriu que
o tempo sempre é suficiente. Os olhos é que não o sabem sentir. As mãos é que
não o sabem transformar. As pessoas é que não o sabem compreender e aproveitar.
É que essas coisas de eternidade não se medem no relógio ou no calendário, só
se sentem.
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