Cá estamos nós
a experimentar o difícil passo sobre o fio da navalha afiada que é o momento em
que se golpeia o encantamento e se vislumbra o real esgotamento. Cá estou eu,
encarando o papel, transferindo para ele minhas reflexões, como se ele fosse
meu espelho.
Não sei bem se
cabe afirmar que amor e ódio são faces da mesma moeda, mas asseguro: o
encantamento é face gêmea, siamesa, do desolamento. Já adianto que a mim isso
pressupõe um crescimento.
Como o deus
romano Janus e suas duas faces, contemplamos o início e o fim e já não sabemos
se estar no meio disso tudo é benefício, aprendizado ou mera formalidade.
Há em todo
início verde, encantamentos de madrugadas tantas, contos de fios de miçanga,
tão bem feitos que nem se percebem as teias. Há aquele momento perfeito, os
olhares desejosos de futuros, descobrindo-se seres diferentemente próximos e
belos e livres e intensos.
Há um quase
endeusamento. Todo degrau de escada é altar. Todo riso é cântico sagrado. Toda
fala, poesia. E, faz-se do outro um ídolo, um amuleto bom, a boa sorte de todo
o dia.
E vislumbra-se
a juventude estampada e feliz de quem ainda crê no benefício da dúvida. De quem
ainda ouve a tempestade como sinfonia e faz das gotas de chuva elixir divino
escorrendo no canto da boca molhada pelo beijo.
Mas a
tempestade segue seu caminho e despeja sobre nós bem mais que água
transparente. Derrama inquietudes. Derrama sombras. Esconde o nosso sol e a voz
do trovão encobre a melodiosa rima que ouvíamos um da boca do outro.
Não que isso
seja ruim. Não que isso seja o fim. Não que seja a tragédia anunciada, mas é a
outra face de Janus a nos sorrir ou a nos mordiscar os sentidos.
Caem sobre nós
cântaros de realidades, lavam-se as maquiagens, emudecem-se os sons. Somos
confrontados com a humanidade (a nossa, a do outro, a do mundo). E essa
humanidade pode ser cruel, por excesso ou escassez, porque não obedece aos
parâmetros que sonhamos.
O ídolo se
desfaz. Herói vira vilão. O amor se esquece que era poesia, estaciona no bom
dia, agoniza na frustração nossa de todo-o-dia. Mas não é o fim. É a
transmutação da projeção ao real. É a solidificação das essências.
Se somos seres
apaixonados, flertamos com Janus e beijamos suas faces: do amor extremo ao
desprezo, precisamos do equilíbrio.
Ao encarar
Janus experimento o déjà-vu, de
minhas tantas histórias e entre o início e o fim, padeço, cresço, resisto e
busco o tal equilíbrio. A esse, longe de ser apenas sonhos, longe de ser apenas
dureza, sou salva. Somos todos salvos pela coerência e a dádiva de sermos
humanos e poder, sobretudo, refletirmos e (re)construirmos de novo e de novo.
0 Comentários:
Postar um comentário