(Para ler ouvindo Una Mattina de Ludovico Einaudi)
Quando todos dormiam no sossego e aconchego de
suas camas eu estava acordada. Enquanto os homens tolos pensavam ser donos de
si e de seus desejos eu já planejava o seu dia de amanhã, prevendo que seriam
os seus próprios lobos sem que se dessem conta.
Por minhas próprias mãos dei forma e vida a
dois filhos igualmente dependentes um do outro, como gêmeos siameses. Antes que
cada um deles abrisse os olhos para o novo dia eu os nomeei. E escolhi os seus
nomes de maneira que nenhum homem se esquecesse. Seriam um binômio quase tão perfeitos
quanto antagônicos: Tempo e Pressa.
Ao parir esses dois, aceitei, de bom grado,
acolher em meus braços outros filhos: o Antes e o Depois, que cresceriam ao lado
do Tempo, da Pressa e dos homens. Outros filhos viriam, eu sabia. E aceitei
cada um a seu tempo, compondo o ritmo do mundo, o ritmo de toda a minha
criação.
Deixei que os homens despertassem e se
lançassem em sua correria diária em busca de meu querido Tempo, que já perdiam quando
se enlaçavam com a Pressa.
Ao homem faltava um tanto de discernimento para
perceber que a irmã gêmea do Tempo era quem mais concorria para o afastamento entre
eles. A Pressa levava os homens rumo ao sem-Tempo em passos cada vez mais
largos.
Sou ré confessa. Revelo que criei ao mesmo
tempo a salvação e a perdição de todo aquele que se pega desatento na vida. Para
quem tem a Pressa como companhia, acaba faltando o Tempo e, para todo Antes não
planejado, sofre-se um Depois de incertezas.
Diante de minhas criações, os homens aprenderam
a se virar e a criar. E a cada nova criação se voltavam a mim dando-me novos
filhos e filhas, os quais recebi e acalentei. Um deles, uma jovem, na verdade,
eu chamei de Saudade, que nasceu bem no dia em que o Tempo percebeu-se diante
da distância entre os homens.
A Saudade era moça de aparência doce, quase
lívida, que sabia bem causar dor, mas sabia também ser leve. Ela gostava de
passear nos sonhos, de visitar as infâncias, de abraçar os amigos perdidos pelo
Tempo e a Pressa. Gostava de sentar nas janelas dos corações e ficar ali,
jogada em um canto. Às vezes flertava com a Tristeza. E era teimosa. Só saia do
coração quando recebia um abraço ou via sua irmã Alegria chegando.
Ah, esses homens... Abriam mão de sua inocência
por pouco. Perdiam-se em descaminhos por caprichos vãos, mas eram incansáveis. Buscavam
meios de recomeçar sempre. Tanto que criaram o Perdão. Tão nobre quanto
difícil, mas sublime ao ser bem recebido.
Ah, esses homens, de olhos curiosos, atentos,
fixos, com suas retinas sempre muito bem preparadas para observarem as
histórias que o mundo pintava... Eles ainda me surpreendiam... Tanto que
criaram o Amor. E esse veio a ser o filho que abracei com o maior cuidado, com
a maior admiração.
O Amor era multiforme, multicolorido, adaptável
ao mundo inteiro e capaz de habitar tantos lugares quanto era desejado. Incansável.
Destemido. Quase uma semente que é capaz de morrer para renascer com mais
força, dando frutos que se multiplicam. E talvez fosse mesmo uma semente. Dessas
aladas, que se espalham e alcançam lugares inimagináveis.
Enquanto os homens dormiam, eu os admirava. Eles
já haviam se perdido e se reencontrado. Eles tinham tudo para desistirem logo
que acordassem, mas persistiram.
Eram os aprendizes eternos e se tornaram
professores. Eram criaturas e acabaram por ser criadores. Tornaram-se fortes
diante de cada fraqueza. Cresceram diante de cada obstáculo e, por mais que o
Tempo passasse rápido enquanto eles tinham Pressa, aprenderam a lidar com cada
filho meu: com a Saudade, com a Tristeza, a Alegria, o Perdão e jamais
esqueceram do meu filho predileto, o Amor, que gosta mesmo de caminhar próximo
da Esperança.
Enquanto os homens dormiam eu me fiz como a mãe
da criação, como mito que atravessou os séculos e os velava, garantindo sua
segurança no conforto de suas camas, orgulhando-me de como foram capazes de ser
muito melhor do que poderiam. Enquanto eles dormiam eu percebi o quanto os
quero bem e o quanto nada é pronto e acabado.
1 Comentários:
lindo texto... me lembrou muito a história dos sentimentos de lya luft no livro perdas e ganhos... claro q com seu toque... acho q antes de gerar o amor, veio a amizade... é ela talvez o estado embrionário de algo maior? sinceramente não sei... já vi amores nascer prematuros! a única certeza que tenho é que ela se orgulha imensamente quando percebe que soube escolher... e que escolheu, também, você!
Raphael Linhares
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