Visitas da Dy

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Firme


Fixei meus pés no chão. Fiquei firme. Firme para dar vazão ao pensamento. Para a cabeça que vive na lua, é preciso uma raiz bem forte para que o voo tenha fim e tudo volte a seu lugar.
Abri uma caixa que carrego no peito e deitei-me dentro dela, cobrindo-me com meus sentimentos, ofuscando-me com a luz de cada um deles, optando por segui-los cegamente.
Abandonei a razão em um canto. Deixei-a em companhia da lógica que a fantasia evita, que a vida dispensa. Esvaziei-me de toda consciência por alguns instantes, desfrutando apenas do sabor do vento, do toque macio da manhã, do som dos raios de sol desabrochando as flores teimosas no inverno.
Prometi não mais cruzar os braços. Diante de nada. A apatia, amarelada, não cai bem como aquarela para pintar as versões finais dos esboços de felicidade que tracei.
Comparei minha vida a uma bolha de sabão e descobri que a leveza e a brevidade caminham de mãos dadas e que cabe a mim permitir mais cores, mais voos, mais matizes.
Decidi romper a inércia. Andar com os cabelos ao vento. Assoviar a música preferida. Correr com o cachorro. Pular dentro da piscina. Rasgar o papel de figurante que aceitava com gratidão para escrever, eu mesma, os rumos da minha história.
Fiz uma lista de coisas que comecei e nunca terminei. Analisei cada uma delas e ficou patente que os planos mais bem sucedidos nem sempre foram cuidadosamente pensados desde o início, mas que eles precisaram ser finalizados. Talvez os resultados mais surpreendentes ainda estejam engavetados, à espera não de um milagre, mas de uma atitude. E darei o meu melhor a cada um desses planos estacionados no tempo.
Resolvi decorar. Comecei pela música favorita, depois pelo trecho de livro favorito, e, então, o poema. Há de se ter arte na vida! Há de se saber bem no coração aquilo que nos agrada, que nos faz bem. E assim, não só saberei de cor tudo aquilo que me encanta, mas decorarei minha vida com essas paisagens sutis de tons quentes. Guardarei, de cor, no coração todo o fascínio que o simples me desperta.
Recitei versos ao luar, ao meio-dia, ao meio da tarde, no meio da rua ou no quarto trancado. Rimas ricas ou pobres, autorais ou cópias fiéis, mas falei aos quatro ventos de amor e de paz. Recitei linhas de Neruda e Plath, de Quintana e Wilde e as confundi com as minhas linhas, aquelas que trago na palma das mãos, escritas com tinta, mas que respingam meu sangue.
Aprendi coisas coma minha xícara de café. Quente demais não dá pra tocar. Se esperar demais esfria. Meio cheia, meio vazia. Linha tênue de separações, sutilezas de humores e visões e um mundo entre o gosto e a língua até que se toquem e formem um outro mundo de sensações e sabores.
Tagarelei sandices conscientes e seriedades frívolas. Tateei o incompreensível em duetos sentimentalíssimos e em binômios de palavras antônimas que me cabiam perfeitamente, assumindo que minhas ideias equilibram-se à medida em que me desequilibro e consegui chegar perto do que chamam de paz.

Posicionei-me firme. E adotei essa como a mais nova e sólida palavra de meu castelo de ideias abstratas. Firme. Se algo pode significar as mudanças, que seja por sua maior característica, a firmeza, então... que seja firme.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

O Verbo



A vontade de acertar nos impulsiona a tantos caminhos, tantas veredas, e são todas tão revestidas de esperanças que nos lançamos na busca pela felicidade.
Com sorte nossos pés cruzarão a fronteira de nosso eldorado e teremos a certeza de que tudo deu certo. Com sorte esse momento virá logo. Caso contrário, teremos uma companhia na cama: a dúvida. Chega uma hora em que somos consumidos por ela. Chega uma hora que todas as nossas exclamações são envergadas e transformam-se em interrogações.
Faltam-nos palavras. Que verbo usar para afastar a dúvida? Como arrancar de nosso íntimo tudo o que nos amedronta?
Todas as promessas que ouvimos parecem ocas. E o vazio aumenta a cada vez que lembramos das tantas ultimas vezes declaradas, juradas e não cumpridas.
Chega uma hora que por mais seriedade que tenhamos, não saímos do lugar ou será que saímos e voltamos sempre ao ponto de partida sem perceber? Para todas essas voltas, o cansaço é a resposta. E quando ele chega, desaba sobre nós a vontade de fugir. De sumir. De evitar o mal que nos consome frente a toda impotência que sentimos.
É quando cansamos de lutar que entendemos o suplício de Tântalo. É quando o mundo, mudo, vasto mundo, não nos mostra mais do que rostos de Raimundos e Marias cujas bocas não falam, que percebemos que não nos saciamos. Que não alcançamos todas as certezas e que nos abandonamos aos poucos pelos caminhos.
Há um momento na vida que se repete de tempos em tempos em que as palavras ecoam em nós e reverberam seus sons por toda parte devolvendo-nos nossos questionamentos.
Frente a tantas dúvidas, nossa alegria se dissipa com o apagar das luzes e tudo perde parte do sentido. As palavras que deveriam ajudar nos levam para longe de nós mesmos e nos perdemos cada vez mais. O convívio com nossa própria sombra passa a ser insuportável.
Pular do trem! Abandonar o navio. Abandonarmo-nos de vez e irmos para outro mundo. Essas são as nossas vontades, mas somos presos a nós e a nossas escolhas. Somos presos às nossas histórias.
Qual é o verbo que nos cabe quando nenhuma palavra faz sentido?
Qual é o verbo que nos ajudar a reconstruir a sanidade quase perdida?
Qual é a saída para esse lugar escuro em que tateamos a decepção?
A saída é escondermos as tesouras de nossas mãos. É pararmos de despedaçar nossos corações com torturas desnecessárias. O segredo é aprendermos com tudo e enxergarmos as gotas de sabedoria que mesmo pequenas saciam nossa alma sedenta.
Se estamos na escuridão das dúvidas, que queimemos nossas inseguranças e que possamos ver as faíscas subindo, iluminando nossas novas possibilidades.
Espantar nossos fantasmas quebrando as suas correntes é dar a liberdade a nós e não apenas a eles. A fuga não resolve, adia. E o verbo certo é sempre o agir, o recomeçar, o mover.

Para os dias em que desejamos a fuga, que saibamos ficar e mudar o que nos incomoda, para que cresçamos e reconquistemos a alegria de viver.

Macaé


(Para Pércio Pedra)

Pra não dizer que não falei de maré
Que não soube lidar com o vai e vem
Das ondas sempre insatisfeitas,
Busco a praia e as vejo se jogar de volta ao mar.

Pra não dizer que não entendo de espumas,
Que não fiz planos que se desmancharam ao vento,
Escrevo nomes na areia com destinos certos:
O fundo do mar, naufragados, quase esquecidos.

Pra não dizer que não provei do sal,
Mergulhei de olhos abertos no mar.
Chorei as penas que tive e as que vou ter,
Bebi todos os mares e quase morri na areia.

Pra não dizer que não lutei,
Busquei refúgio em outros mares,
Longe dos morros das Minas.

Fui pra Macaé.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Balada do Companheirismo



Corda e caçamba. Espeto e brasa. Poesia e rima. Companheirismo.
Os duetos que se formam entre almas que parecem se reconhecer é sempre perfeito. As mãos que prometem ser apoio, os pés que traçam caminhos próximos. A voz conhecida que soa como música aos ouvidos. Para todo o mundo, créditos, para essas almas que se reconhecem, a entrega.
A certeza de que se pode contar sempre com alguém é como soneto pronto e acabado: forma simples, ritmada e sublime. A entrega vai desde o primeiro suspiro à última brasa que aquece o coração. Da primeira letra pronunciada ao último movimento do sangue nas veias.
As almas que se reconhecem ao longo da vida se desenham em duetos, tercetos, quartetos e fazem dos silêncios sinfonias. São raízes de árvores que ultrapassam os séculos e tocam os céus, onde a lua tonta com tanta devoção vê estrelas delirantes.
O equilíbrio das embarcações em tempestade, o reavivamento das memórias esquecidas, empoeiradas, que voltam a ter cor e cheiro e som. O reconhecimento de si e das histórias alicerçadas em nós, que é entendida como a pessoa perfeita de todos os tempos das conjugações.
As promessas que se transformam em baladas de um companheirismo jurado por todo o tempo que o relógio permitir e todos os sonhos que couberem num piscar de olhos ou na concha das mãos.
A prece que entoamos com a boca cheia do amargo pão adormecido nas tensões que se tem ao crescer, ao amadurecer, engolidas a seco paulatinamente com dúvidas e incertezas, às vezes intercaladas com os vinhos doces das conquistas e realizações.
A busca por tantos horizontes que derretem com os sóis implacáveis de nossas teimosias diárias. As penas que açoitam a carne e cegam os olhos com as pupilas voltadas para holofotes errados. Tudo é amenizado quando se houve a balada do companheirismo há muito escrita por tantas mãos que se reconheceram.
O limite tênue que separa o sentimento de vazio e o de plenitude, o riso escancarado do choro desconsolado. As tantas voltas que a vida dá e há de dar. Os desejos benfazejos que se sobressaem só porque se ouviu a canção conhecida quando as mãos pareciam sós e desatinadas.
Há em nós um amor maior que todo o sofrimento, que impulsiona para a luta e move-nos na direção de sermos pessoas melhores. Um amor que precisa ser reconhecido por almas semelhantes à nossa, que compreenda, que se encante com os pássaros frágeis e sábios, que distinguem as estações pelo nascer do sol e sussurre aos nosso ouvidos um “você não está só”.
Há em nós a necessidade de contar com quem quer que seja que conheça os abismos que nos amedrontam, que vaguem por cidades desertas nas madrugadas geladas, que celebrem nossos desamparos e nos ergam ao final do dia em brindes de vinho tinto encorajadores.
Há a necessidade de repartirmos nossa sede e nossa fome e aquilo que nos é indivisível: nossa essência. E é nesse momento que ousamos compor a música de nossas vidas. A balada do companheirismo que será cantada quando tudo for silenciado. E que nos dirá mais de nós do que toda boca possa ousar.
É porque dividimos o que nos é indivisível que saberemos nos encontrar. Saberemos como nos chamar. Saberemos ser presentes no presente, vindo de um passado ancestral, traçando futuros (im)previsíveis e esperançosos. Teremos, ao ouvir nossa música-promessa, a coragem para seguir.

Caminharemos lado a lado seja em labirintos ou vales, colheremos flores, descansaremos nas sombras. Reconheceremo-nos. E todas as respostas possíveis serão encontradas ou nem mais serão necessárias, porque pelo companheirismo saberemos que há com quem contar. 

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Sob o Chuveiro, um Temporal



Há dias em que o silêncio é necessário. Tão preciso quanto precioso. Cúmplice eterno de nossos passos, de nossas sombras e das sobras de nós quando os dias se vão.
No vão de tudo o que deixamos de fazer, nas brechas que transformamos em abismos e nas pontes que fazemos questão de desconstruir, nos vemos cada vez mais distantes de tudo o que gostaríamos de ser.
Sonhos cedem espaços para necessidades. A urgência dita nosso ritmo e para que tudo o que é sólido se desmanche no ar é questão de tempo. Aos poucos somos reduzidos aos nossos esboços.
É nessa hora em que o silêncio precisa ser sentido, ser contemplado. É nessa hora que as vogais precisam ser surdas, todas as letras mudas, todos os pensamentos calados.
É nessa hora que só nos resta vislumbrar o som mudo e alto de nossos pensamentos que são torrentes a nos levar para longe de onde os pés estão, salvando-nos do chão.
Afogar as ideias é tudo o que desejamos. Na falta de um oceano, de um sal para bebermos, que venha o chuveiro e o doce de suas águas quentes. Que seja a fumaça que sai do Lorenzetti aquela que dissipará a nuvem negra que paira sobre nossas cabeças.
Mas pouco adianta a reza, se em nosso copo com água já mora a tempestade. Pouco adianta o esforço de conter o que não tem limites e é lá, no banho, que somos livres. Se fazemos desse momento o nosso palco e cantamos, se somos dançarinos e rodopiamos, é lá também que pensamos.
Sob o chuveiro, um temporal. Desabamos. E lavamos a alma. e a lágrima lava o corpo e rola intrépida, inconteste, desvairada e vai acalmando. E vai deixando para trás um sossego antes impossível. E cai sobre as falhas como se pudesse apagá-las.
Nossas nuvens negras só se misturam com a fumaça da água quente quando permitimos que nosso temporal se dissolva em parte de nós mesmos e escorra pelas nossas bordas. Trans-bordar. Transbordamos. Transformamos. Rebordamos nossos pontos-cruzes, refazemos nossos fardos e reaceitamos nossas cruzes. E nos recolhemos, de novo, ao silêncio. O nosso cúmplice. O címbalo que retine apenas ao nosso ouvido. As palavras compreendidas apenas por nosso coração.
Precisamos do silêncio. Eu preciso. Preciso sentir o leve desamparo das paredes que devolvem meus ecos mudos e impronunciáveis. Preciso sentir que é na ausência das palavras que encontro a cura que nunca foi necessária, porque dor não se cura. Se sente. Se aprende. Se convive.
Preciso ter a medida exata e consciente de que ao menor balbucio minha alma será feita em migalhas, como espelho quebrado no chão e seus sete anos de azar espalhados pelos cantos da vida e das folhas do calendário esperando a praga passar.
Preciso, muitas vezes, dentro de mim e para todos que me olham, calar. Saber que sou ao mesmo tempo um ser denso, tenso, imenso em meus limites e que se sobre-vivo aos obstáculos que surgem, agradeço aos temporais que faço nos dias de sol, sob meu chuveiro e aos meus silêncios gritantes e salvadores de toda agonia.

É quando calo que me aprendo. Que coexisto em mim e com meus eus. É quando me doo e amo. Cada vez mais.

Chuva II




Havia naquela tarde desejos de bem-querer e de chuvas. As narinas ansiavam pelo cheiro de terra molhada. Os pés pareciam sedentos de poças d’água cristalinas, de gotas celestiais.
Gostava de caminhar na chuva, sentir as gotas escorrendo pelo rosto e lavando a vida. Via nas gotas pequenos pedaços de espelhos que refletiam tantas possibilidades quanto podia imaginar.
Pensava que cada gota era, em sua pequenez, uma infinidade de histórias, vidas que se jogavam, que paravam, que seguiam seu curso, que voltavam ao ponto de partida de onde vieram.
Encontrava na chuva a metáfora perfeita para todas as pessoas. Encontrava na chuva um abrigo que lhe cabia muito bem. Trazia-lhe paz o tilintar das gotas. Embalava-lhe os sonhos aquele ritmo da chuva.
Gostava da chuva e, para além de crer que ela lavaria e levaria para longe as dores e as aflições, ainda gostava da certeza de que ela, a chuva, assim como amolece a terra e sacia as sementes que a esperam para brotar, amoleceria os corações duros e faria o amor nascer.

Embalava em seus dias mais secos o desejo pela chuva, que era um desejo de bem-querer, de dias melhores, de alívios, de renovo e de esperanças. Embalava sonhos de brincadeira de criança em ombros adultos que suportavam bem mais do que gostariam. Enchiam d’água os olhos cansados, vertendo a água que desejavam ver cair do céu. E sabia que viriam gotas de felicidade.

domingo, 13 de julho de 2014

Madrugada


A madrugada é a casa das almas insones
O refúgio dos pensamentos inquietos,
O oásis de desejos nômades,
Ressequidos com as areias da ampulheta
Que nunca cessam, que nunca esperam.


A madrugada é fruta orvalhada
Para bocas famintas
Liberdade para as loucuras,
Asas para pés enraizados,
Calmaria para corações acelerados

A madruga é casa de veraneio
De quem se cansa em lutas diárias
E não descansa enquanto os outros dormem.
É o abrigo de palavras que nascem com o sol
E vê nela, a madrugada, sua tábua de salvação.

A madrugada é onde me perco
E me perdendo, me acho.
É quando cansada, não durmo
E descanso a alma atarantada,
E sacrifico o corpo no raiar de um novo dia.

A madrugada é amparo de agonias,
É sinfonia de suspiros,
É colheita de lágrimas,
Segredos e gemidos.
É a liberdade que chega, ainda que tardia.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Leve Cansaço



Talvez no fim do dia só reste isso: um leve cansaço. Uma vontade enorme de fechar os olhos, desligar e, com sorte, acordar em outro século. Às vezes só alguns meses bastariam.
A vontade é dessas de se transportar para lugar-algum-em-tempo-desconhecido. E ela bate naquelas segundas-feiras que nos pegam em momentos imprevisíveis, até nas feiras, já que pode ser em pleno sábado, quinta, ou domingo, tanto faz o dia. A segundona vem. A segundona pesa. Ela parece saber o nosso calcanhar de Aquiles e mira bem no ponto fraco. E acerta. E derruba.
Pode ser por um motivo qualquer, mas pode ser – e na maioria das vezes é – pelas pessoas. Pela exaustão diária dos exercícios mirabolantes que são as relações.
Essa coisa de conhecer os conhecidos e os desconhecidos. De decifrar os enigmas, de matar os leões, de quebrar barreiras, construir pontes e não muros e nadar contra a corrente. É tudo tão cansativo. É tudo tão extenuante.
Em dias como o de hoje eu me sinto extremamente cansada. Olho com desconfiança para todos os lados e não encontro apoio em lugar algum.
Talvez seja só a busca pela paz que extrapola os seus limites e fica mais evidente, dando um baque, já que nos outros dias disfarçamos o insucesso em alegrias breves.
Deve ser a vontade de beber doses de tranquilidade que seca mais a boca e nos tira a capacidade de falar e quase de respirar.
É só uma vontade de encontrar sorrisos firmes e sinceros, daqueles que iluminam e que são bem diferentes daqueles que estampam as caixas de cremes dentais.
Deve ser mesmo uma vontade de sinceridade ou de verdades ou de tantas coisas que fazem falta e que parece que ninguém mais se dá conta. A vontade de sumir é isso: é solitária, mas é coletiva em dias como o de hoje. É uma vontade minha, mas que encontra guarida em outros corações.
Deve ser coisa de poeta querer ver rima em tudo. Não se conformar com as cores das ruas. Não ter vocação para viver com os sentimentos sufocados e não se sentir bem nesse aquário em que vivemos.
Deve ser coisa de gente que nasceu poesia e tem asas querer se desprender do chão e sair sem rumo, querer perder o norte voando pro sul, querer tocar a linha do Oriente dando a volta pelo Ocidente. Deve ser coisa de quem não se acostuma com nada, de quem nasceu pra questionar porque gosta de brincar de interrogações.
Deve ser só cansaço de mais um dia, daqueles que nos arrebata e nos faz querer ver no sono o alívio ou a salvação, um adiamento ou uma solução. Deve ser passageiro, como eu nessa terra em que tateio o céu e corro entre as estrelas porque as flores são poucas e prefiro o perfume estelares aos contornos primaveris de qualquer cor.

Deve ser a sensação de que o tempo não passa ou a de que ele não para. Deve ser só coisa da minha cabeça essa vontade de sumir. Mas ela passa. Ou some. Sei lá.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Desertos II



Por vezes os seus desertos só eram alcançados depois da meia-noite. Depois que não havia mais nenhuma chance do sol permanecer. Depois que o veludo mais escuro caia sobre o céu e escorria as suas franjas pela terra.
Seus desertos eram mais frios que os outros. E tão reais quanto todos aqueles que os beduínos cruzavam, com a vantagem de ser só seu. Habitado apenas por aquilo que ela permitia, mas era costume ser constituído só de ausências.
Essa sutil construção a ajuda a compreender-se cada vez mais, revisitando-se intimamente.
Faltava-lhe ali o calor das palavras. Ela gostava mesmo era de sentir os ventos causados pelos pensamentos voando. Faltava-lhe ecos. Mas tinha os ouvidos surdos naqueles momentos, concentrando-se só no ritmo da própria respiração.
Construía suas dunas de incertezas e caminhava por elas com os pés afundando na areia que refletia a leve claridade lunar de um crescente, acompanhado de uma única estrela, anunciando a proximidade de um novo mês.
A caminhada era conhecida. Fazia o mesmo caminho, insone, todas as noites. Enquanto todos à sua volta dormiam, ela vagava. As suas respostas também a esperavam pontualmente e previsivelmente no mesmo lugar, fixadas como tamareiras emoldurando seu oásis de satisfação ao encontrar as soluções que lhe fugiam ao longo do dia.
Em mais uma noite de lucidez desvairada pelos seus próprios desertos conseguiu chegar em seu oásis, com a paz de um por do sol. Olhando as pegadas que ficaram pelo caminho, admirou a delicadeza com a qual o vento as apagava e entendeu que a simplicidade é fundamental para se chegar a todos os lugares.
Percebeu que nada acontece sob o céu de Allah sem que ele determine e que todo o destino foi traçado cuidadosamente por ele. Não há dores maiores do que podemos suportar e nem sede maior do que a língua possa segurar.
Tudo já estava escrito e, se havia momentos tortuosos, se havia tanto deserto, logo o oásis viria. A alegria também está escrita. E por ser a vida um meandro divino, tudo é suportável porque as forças brotam no meio das dunas, caindo dos céus, das mãos cuidadosas que nos forjaram.

Todas as noites ela caminhava por seu deserto povoado apenas por ela mesma e era isso que lhe renovava as forças. Era dele que ela recebia as inspirações para avançar nas horas dos dias infindáveis que a aguardavam ao nascer do sol.