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quarta-feira, 30 de maio de 2012

O Menino e a Pipa




Era uma tarde quente, mas ainda não era verão. Estávamos na primavera. Eu era acostumado a passar as tardes quase que em contemplação, olhando o horizonte e pensando nada. Quando muito eu pensava nas cores que o céu ganhava com o avançar das horas, o cair do sol e o despertar da noite. Mas ainda era cedo. Não passavam de quatro da tarde.
Eu gostava de terminar as minhas tardes ali, sentado na grama, olhando para o longe e pensando em você. Nessa tarde algumas coisas estavam diferentes: não pensava em você, mas no conselho que me foi dado com frieza crudelíssima: “afaste-se”.
Ouvi o tal conselho na noite anterior, mas, mesmo com toda aspereza com a qual aquelas palavras tinham entrado em meus ouvidos e gelado meu coração, fazendo correr um arrepio indescritível pela espinha e membros, eu não tinha parado pra pensar no que, de fato, ele queria dizer.
A voz companheira a sugerir-me a distância voltou-me aos ouvidos e enchia-me a cabeça nessa tarde. Parei de olhar o nada, como quem nunca quer nada, e passei a pensar em mim, em você, no conselho, nos dias. À primeira vista fui resistente. Não me afastaria, jamais, do que me faz tão bem. E você me fazia bem. Um bem danado. Fui teimoso. Fui tinhoso. Mas parei rpa pensar...
Depois de certo tempo olhando o arrebol consegui, aos poucos traçar metáforas que me dissessem exatamente os nossos papeis nessa história teatral que é a vida. (Muitas vezes eu pensava que em algum lugar alguém nos assistia, de camarote, a morrer de inveja de nossos sorrisos, a chorar nossas lágrimas, a rir de nossas desgraças).
Sua presença parecia-me tão necessária quanto o ar, estabelecemos uma relação quase que vital, em sua essência, creio que já era visceral. Ao longo de nossos dias eu não assumia outro papel que não o meu mesmo: eu era o menino e você a pipa. A minha pipa. Éramos unidos por uma linha, tênue, passível de ser arrebentada ao menor tranco, mas resistíamos. Nossa linha parecia corrente, por mais que soubéssemos de sua fragilidade.
Passávamos nosso tempo juntos nessa relação menino-e-pipa mais ou menos soltos no ar. Eu voava vendo seu voo. E eu nunca soltava a linha: era egoísta. Não queria ver minha pipa, tão minha, tão estimada, alçar voo longo, longínquo, por lugares desconhecidos, onde eu, limitado com os pés no chão não poderia ir a acompanha-la. Cheio de meu egoísmo, ao menor sinal de que a linha estava frouxa, puxava.
Em certa medida sentia-me incomodado com o que via: como a pipa parecia feliz lá no céu! Suas cores pareciam mais brilhantes. Seu vermelho se misturava com um azul que ela trazia, fazendo com que o seu anil fizesse um degradê com o celeste e o vermelho, contraste com a calma e tranquilidade  das tardes de vento leve, quase dominicais.
Disseram-me pra “dar linha”, deixar voar. Ainda complementavam a dizer que “A pipa não se solta das mãos de quem a conduz!”. Tremi. Temi. Sofri. Mas naquela tarde, olhando o quanto o voo de minha pequena pipa era tão cheio de vida, percebi que poderia ser mais: poderia ser pleno, sem amarras.
Com mão trêmula e olhos marejados comecei o lento processo: a cada novo centímetro que soltava da linha, lá ia ela, livre, dançando na imensidão azul rajada de branco. O vento soprava-me o rosto e eu o engolia seco, com boca raivosa, como quem quer morder o infinito e o estraçalhar.
Como era possível que a MINHA pipa voasse tão alegre? Ela não sentia a frouxidão da linha? Será que não se importava com a mão que a segurava de longe, vendo seu bailado cada vez mais distante da terra? Ela parecia sorrir no céu aclarado pelo sol das quatro da tarde. E eu me afundava num brilho tão ofuscante de admiração e impotência. Minha pipa de estimação voou. Agora senti a falta dela, porque mais que um brinquedo para um menino em sua infância, ela era minha companhia, minhas asas e agora eu teria de criar minhas próprias asas pra voar atrás dele e tentar alcança-la na imensidão de uma tarde que já ficava alaranjada, que já não se parecia com um domingo, que me fez despertar para as relações que travamos na vida: porque às vezes estar perto, não é segurar pela linha. É só saber voar e acompanhar se não com as asas próprias, com os olhos que admiram.

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