Era uma tarde
quente, mas ainda não era verão. Estávamos na primavera. Eu era acostumado a
passar as tardes quase que em contemplação, olhando o horizonte e pensando
nada. Quando muito eu pensava nas cores que o céu ganhava com o avançar das
horas, o cair do sol e o despertar da noite. Mas ainda era cedo. Não passavam de
quatro da tarde.
Eu gostava de
terminar as minhas tardes ali, sentado na grama, olhando para o longe e
pensando em você. Nessa tarde algumas coisas estavam diferentes: não pensava em
você, mas no conselho que me foi dado com frieza crudelíssima: “afaste-se”.
Ouvi o tal
conselho na noite anterior, mas, mesmo com toda aspereza com a qual aquelas
palavras tinham entrado em meus ouvidos e gelado meu coração, fazendo correr um
arrepio indescritível pela espinha e membros, eu não tinha parado pra pensar no
que, de fato, ele queria dizer.
A voz
companheira a sugerir-me a distância voltou-me aos ouvidos e enchia-me a cabeça
nessa tarde. Parei de olhar o nada, como quem nunca quer nada, e passei a
pensar em mim, em você, no conselho, nos dias. À primeira vista fui resistente.
Não me afastaria, jamais, do que me faz tão bem. E você me fazia bem. Um bem
danado. Fui teimoso. Fui tinhoso. Mas parei rpa pensar...
Depois de
certo tempo olhando o arrebol consegui, aos poucos traçar metáforas que me
dissessem exatamente os nossos papeis nessa história teatral que é a vida. (Muitas
vezes eu pensava que em algum lugar alguém nos assistia, de camarote, a morrer
de inveja de nossos sorrisos, a chorar nossas lágrimas, a rir de nossas
desgraças).
Sua presença
parecia-me tão necessária quanto o ar, estabelecemos uma relação quase que vital,
em sua essência, creio que já era visceral. Ao longo de nossos dias eu não
assumia outro papel que não o meu mesmo: eu era o menino e você a pipa. A minha
pipa. Éramos unidos por uma linha, tênue, passível de ser arrebentada ao menor
tranco, mas resistíamos. Nossa linha parecia corrente, por mais que soubéssemos
de sua fragilidade.
Passávamos nosso
tempo juntos nessa relação menino-e-pipa mais ou menos soltos no ar. Eu voava
vendo seu voo. E eu nunca soltava a linha: era egoísta. Não queria ver minha
pipa, tão minha, tão estimada, alçar voo longo, longínquo, por lugares
desconhecidos, onde eu, limitado com os pés no chão não poderia ir a acompanha-la.
Cheio de meu egoísmo, ao menor sinal de que a linha estava frouxa, puxava.
Em certa
medida sentia-me incomodado com o que via: como a pipa parecia feliz lá no céu!
Suas cores pareciam mais brilhantes. Seu vermelho se misturava com um azul que
ela trazia, fazendo com que o seu anil fizesse um degradê com o celeste e o vermelho,
contraste com a calma e tranquilidade das
tardes de vento leve, quase dominicais.
Disseram-me
pra “dar linha”, deixar voar. Ainda complementavam a dizer que “A pipa não se
solta das mãos de quem a conduz!”. Tremi. Temi. Sofri. Mas naquela tarde,
olhando o quanto o voo de minha pequena pipa era tão cheio de vida, percebi que
poderia ser mais: poderia ser pleno, sem amarras.
Com mão
trêmula e olhos marejados comecei o lento processo: a cada novo centímetro que
soltava da linha, lá ia ela, livre, dançando na imensidão azul rajada de
branco. O vento soprava-me o rosto e eu o engolia seco, com boca raivosa, como
quem quer morder o infinito e o estraçalhar.
Como era
possível que a MINHA pipa voasse tão alegre? Ela não sentia a frouxidão da
linha? Será que não se importava com a mão que a segurava de longe, vendo seu
bailado cada vez mais distante da terra? Ela parecia sorrir no céu aclarado
pelo sol das quatro da tarde. E eu me afundava num brilho tão ofuscante de
admiração e impotência. Minha pipa de estimação voou. Agora senti a falta dela,
porque mais que um brinquedo para um menino em sua infância, ela era minha
companhia, minhas asas e agora eu teria de criar minhas próprias asas pra voar
atrás dele e tentar alcança-la na imensidão de uma tarde que já ficava
alaranjada, que já não se parecia com um domingo, que me fez despertar para as
relações que travamos na vida: porque às vezes estar perto, não é segurar pela
linha. É só saber voar e acompanhar se não com as asas próprias, com os olhos
que admiram.