De que me vale toda essa mobília
se a casa fica sempre vazia?
E para quê tantos copos e
pratos e talheres, nessa mesa posta se ningué me visita?
Não, não é por falta de
amigos, me entenda bem… é que em certos momentos da vida passamo a apreciar
mais a solidão e o silêncio. Passamos a preferir a companhia dos livros, dos
poemas, poesias, prosas, mesmo.
Às vezes digo que prefiro a
companha dos mortos, porque parece que só eles me compreendem: encontro-me nas
toadas de Eric Satie, de Chopin, de Bach. Reencontro meus senimentos nas linhas
dos que já foram como Pessoa, Maiakovski, Goethe, Drummond, Cecília, Florbela,
Clarice, Neruda, Garcia Márquez, Galeano.
Há algum tempo pensava que
esse apreço pela solidão só se dava na velhice, quando cansadas do mundo,
cansadas de suas vidas, as pessoas preferiam se recolher e fazer o seu balanço
final, avaliar o que foi feito, suas condutas, suas ações.
Ilusão!
O apreço pela solidão vem da
necessidade de se encontrar.
O que me faz passar horas
olhando os meus livros na estante nesse quarto que parece não ser meu é o fato
de que preciso me encontrar.
Sair às ruas sorrindo e
distribuindo “bom dia” à toda gente é fácil. O difícil é encarar o espelho. É se
ver só com você mesma. É entender que os planos falham, é ver seus defeitos de
frente, é aceitar quem você é e buscar melhorar o que não lhe agrada.
O que me faz escolher a
imensidão dessa casa vazia à companhia de pessoas é que nem todas saberiam
entender o que se passa no meu coração, porque somos muito acostumados a julgar
só pelas aparências, é que quase ninguém consegue ver a sua essência por baixo
da maquiagem. É que os seus vestidos bonitos dizem mais aos olhos de quem lhe vê
ou aos dedos que lhe apontam do que as atitudes honrosas que você toma.
Apetece-me esse silêncio
porque estu cansada de ser vitrine. Sim, somos vitrines o temo todo! O que importa
para os outros é o que eles vêem e não o que sentem e isso é doloroso. É o
sinal de que as coisas não vã bem, de que o barco está furado, de que o capitão
fugiu no primeiro bote e de que estamos à deriva, valorizando demais o que não
tem a menor importância.
Nossos olhos ganharam mais
importância: através deles podemos lançar mão de nosso achismo consumista e
oportunista e rotuar as pessoas pelo que elas aparentam.
Deixamos de lado nosso coração
e o ato de sentir, de conhecer o outro, de extrair o melhor dele e, então,
apreciar essas companhias, essas virtudes.
O que me faz apreciar as
madrugadas e esse silêncio angustiante que só é quebrado pelo som da chuva que cai
desesperadamente em minha janela nesse momento é o fato de que para as pessoas
o que importa é que cabelos vermelhos são sinônimo de gente rebelde, que não
presta, que só pensa em
baderna. Por que não pode ser só a minha cor preferida? A que
eu acho que combina mais comigo?
Sim, eu gosto de vermelho. Sim,
eu sou rebelde. Sim, eu vou gritar ao me incomodar. Vou espernear. Não vou me
conformar. Prefiro a derrota de ter tentado do que a dúvida de um “se”.
Sim, vou usar vermelho nos
cabelos. Ele mostra a cor do meu coração que sangra. Que arde. Que se agita ao
menor sinal de fogo. Que acelera ao ver o mar. Que sabe que é confuso e que não
consegue se organizar. Que pulsa desenfreadamente e descompassadamente em busca
de respostas.
Sim, vou usar o vermelho,
mesmo que não goste dessa cor nas unhas… mesmo que prefira rosas amarelas,
mesmo que seja fora dos padrões.
Vou ser gauche na vida!
O que me faz gostar dessa
casa infinitamente grande e vazia é que aqui as paredes ecoam a minha voz, que
me é familiar e me dá alento. É que aqui a única voz que escuto faz eco aos
meus anseios e não os questiona ou limita ou tenta descontrui-los.
Gosto da sala vazia e dos
livros espalhados por toda parte, não só porque gosto de ler, mas porque gosto
das palavras ditas, soltas, que voam, que tomam corpo e força e expressam (quase) tudo aquilo que
está na alma.
Gosto de ver essa mesa
posta, ainda que vazia. Ela me faz lembrar que já esteve cheia, mas que as
pessoas em sua maioria não mereciam esse lugar, porque eram máscaras venezianas
ao invés de essência. E para mim, máscaras só no carnaval, para disfarçar as
dores que temos no resto do ano. A mesa vazia me faz pensar melhor em quem
convidar para sentar-se nela da próxima vez. Faz-me refletir sobre as pessoas e
o sentimento de confiança, de reciprocidade, de entrega, de amizade.
Gosto dos copos vazios, sem
bebidas ou alegria. Gosto deles assim para lembrar do som dos brindes e pensar
em quantas vezes esses brindes foram vãos. Da próxima vez escolherei melhor a
bebida, melhor a companhia e melhor as palavras do brinde, porque brindar é
selar um pacto. E um pacto deve ser levado a cabo.
O que me faz sentir-me em
paz nesse silêncio que amargura o coração é que ele me faz crescer e amadurecer
e como todo processo de amadurecimento me faz ser melhor. Faz com que eu me
entenda, me aceite, me transforme.
O que me faz entender e
aceitar e preferir o silêncio e a solidão desses dias cinzentos e nublados e
longos e tediosos é a certeza de que em breve o sol nasce, o dia se colore e
isso passa. E a casa voltará a ter pessoas circulando. Não tantas quanto antes,
mas raras e caras, nas quais posso confiar porque me entendem. Porque foram
escolhidas e me escolheram, e por isso sabem que meu silêncio e isolamento são
necessários de vez em quando.
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