Visitas da Dy

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Interioridades



Brinquei de me equilibrar à linha férrea debaixo das gotas da chuva que lavavam-me das agruras do dia pesado.
Segurei na mão invisível do tempo como se o pudesse domar, como se pudesse pedir a ele para parar e deixar-se ser contemplado.
Bebi a chuva como se fosse o melhor vinho já servido pelos deuses. Éramos, então, todos amigos: a chuva, o tempo, eu.
Derramei-me gota a gota sobre aquele chão de terra, brotando novos planos, novos ares, libertando-me dos nós que me prendiam ao relógio.
O tempo sussurrou-me ao ouvido que ele também era livre, que não se aprisionava naqueles ponteiros.
Despedi-me do dia, ainda com o corpo molhado e abri-me em braços e entregas para a lua que crescia prateada. Eu era quase uma janela por onde ela entrava e iluminava as idéias. Eu era uma quase filha de seus raios. Eu era abandonos desejosos de acolhida.
Com os pés descalços, entre os dormentes da linha férrea abandonada, ensaiei uma valsa silenciosa, tocando o chão gentilmente, como se fosse bailarina acariciando-o com a ponta dos dedos.
E eu sabia que eu me derramava ali, depois da chuva, em pedaços de mim, mosaicos de vivências, refeitos, quase novos.
E eu sabia que olhos gentis se pousavam em mim naquele momento e me fiz árvore para receber olhares.
E eu sabia que outros pés se ajuntariam aos meus e me fiz parte do caminho para que a outra parte fosse de companhia.
E fiz das palavras muito mais do que a tradução de meus silêncios. Fiz delas a poesia cotidiana que espera ser colhida em delicadezas.
Fiz do sofá meu trono sagrado, onde repousei o corpo descansado, lavado, remido das pressões de concreto e cal da cidade-gigante que tentava me engolir mais cedo.
Fiz das luzes noturnas meus vaga-lumes urbanos, iluminando minhas preces por companhias realmente valiosas.
E eu soube, naquele instante, que seus passos invadiriam meus dias. E invadiram. E ficaram. E, desde então, esqueci-me de ser conta-gotas do muito pouco que eu tinha. Passei a viver de contos e gotas de felicidade que me nutrem.

Vivo agora em uma feli(z)-cidade: onde as descobertas valem mais que o todo que já era conhecido e esquecido. Agora (im)pulso pela vida. Agora, sim, o céu se mostra poesia. Agora sou raiz e folha ao vento. Verbo e complemento. Sou palavra completa, exposta em verso. Interioridades à mostra.

0 Comentários:

Postar um comentário