Brinquei de me
equilibrar à linha férrea debaixo das gotas da chuva que lavavam-me das agruras
do dia pesado.
Segurei na mão
invisível do tempo como se o pudesse domar, como se pudesse pedir a ele para
parar e deixar-se ser contemplado.
Bebi a chuva
como se fosse o melhor vinho já servido pelos deuses. Éramos, então, todos
amigos: a chuva, o tempo, eu.
Derramei-me
gota a gota sobre aquele chão de terra, brotando novos planos, novos ares,
libertando-me dos nós que me prendiam ao relógio.
O tempo
sussurrou-me ao ouvido que ele também era livre, que não se aprisionava
naqueles ponteiros.
Despedi-me do
dia, ainda com o corpo molhado e abri-me em braços e entregas para a lua que
crescia prateada. Eu era quase uma janela por onde ela entrava e iluminava as
idéias. Eu era uma quase filha de seus raios. Eu era abandonos desejosos de
acolhida.
Com os pés
descalços, entre os dormentes da linha férrea abandonada, ensaiei uma valsa
silenciosa, tocando o chão gentilmente, como se fosse bailarina acariciando-o
com a ponta dos dedos.
E eu sabia que
eu me derramava ali, depois da chuva, em pedaços de mim, mosaicos de vivências,
refeitos, quase novos.
E eu sabia que
olhos gentis se pousavam em mim naquele momento e me fiz árvore para receber
olhares.
E eu sabia que
outros pés se ajuntariam aos meus e me fiz parte do caminho para que a outra
parte fosse de companhia.
E fiz das palavras
muito mais do que a tradução de meus silêncios. Fiz delas a poesia cotidiana
que espera ser colhida em delicadezas.
Fiz do sofá
meu trono sagrado, onde repousei o corpo descansado, lavado, remido das
pressões de concreto e cal da cidade-gigante que tentava me engolir mais cedo.
Fiz das luzes
noturnas meus vaga-lumes urbanos, iluminando minhas preces por companhias
realmente valiosas.
E eu soube,
naquele instante, que seus passos invadiriam meus dias. E invadiram. E ficaram.
E, desde então, esqueci-me de ser conta-gotas do muito pouco que eu tinha. Passei
a viver de contos e gotas de felicidade que me nutrem.
Vivo agora em
uma feli(z)-cidade: onde as descobertas valem mais que o todo que já era
conhecido e esquecido. Agora (im)pulso pela vida. Agora, sim, o céu se mostra
poesia. Agora sou raiz e folha ao vento. Verbo e complemento. Sou palavra
completa, exposta em verso. Interioridades à mostra.