Visitas da Dy

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Não se apaixone por mim



Se tiver medo, não se apaixone por mim. Já tenho minhas próprias questões para trancar no porão. Mas, principalmente, não se apaixone por mim se não quiser correr riscos.
Tenho uma incurável paixão pela vida que tende a ser contagiosa, especialmente transmitida pelos meus sorrisos e abraços, pelos meus beijos cuidadosamente lentos e apaixonados...
Eu posso acabar com a preguiça do seu domingo, fazer festa na segunda-feira, transformar o seu problema em confete. Posso rasgar suas contas a pagar ou fazer delas um aviãozinho de papel porque certas seriedades não me cabem.
Não se apaixone por mim se não quiser redescobrir um jardim da cidade ao qual jamais havia dado atenção. Ah, e se não estiver disposto a marcar-se com lembranças, é favor não se aproximar. A ordem das coisas pode ser bruscamente alterada com minha alegria ou teimosia. É que eu só conheço um caminho para tentar ser feliz e ele é meio bagunçado. Eu o chamo de autenticidade.
Não se apaixone por mim se não gostar (pelo menos) de (cheiro de) café. Preciso de café para trabalhar, para relaxar, para me inspirar e para combinar com outros tantos sabores e atividades. É claro, também, que nada supera o charme de se segurar uma xícara ou caneca de café. Gosto da combinação de café-blusão-música e passos desalinhados de dança a qualquer hora e lugar do dia.
Eu não me importo (ou me importo pouco) com os olhares curiosos. Não respondo a perguntas sobre minha personalidade. Meu cabelo já é um prenúncio do que está por vir, mas não se engane pelo vermelho. Algumas pimentas ardem até os olhos, outras são suaves. Pode se surpreender se for além da superfície.
Não se apaixone por mim se não souber mergulhar. Do lado de cá de minha vida, flerto com as profundidades. Acostumei-me com as intensidades e transbordamentos de sentimentos, por isso me faço poesia (e não poeta!). Por isso canto ao acordar e quando tenho medo. Por isso canto quando estou feliz e vou cantar pra você, mesmo desafinada: é uma sutil forma de lhe envolver nos encantos do que me toca.
Não se apaixone por mim se não souber como chegar até mim, como entrar pelos meus ouvidos e me causar arrepios. Não dê um passo em minha direção se não souber como ficar e mudar e me ver voar. Eu vou voltar. Mas preciso abrir as asas e, nem sempre vai conseguir me acompanhar. Isso não é nada demais. É só questão de espaço, de confiança ou segurança. É uma questão de ar, do que me é essencial.
Por fim, não se apaixone por mim se não entender o porquê de tempestade serem repentinas e avassaladoras. Se não lhe fizerem sentido os nomes femininos dos vulcões ou a lógica visceral dos furacões. Não se arrisque se o mar não lhe despertar nenhuma emoção ou beleza ou encantamento e se não entende o movimento das marés. Se não for capaz de entender que fúria e calmaria são faces de uma mesma moeda, certamente eu não caberei em um porta retratos de sua estante e nossos sorrisos não se conjugarão em nem uma das mais de mil noites que posso prometer.
Não se apaixone por mim se não quer ser meu abraço-amigo em dias nublados. Não se ofereça companhia se não entende as urgências que meus olhos têm de pousar sobre o seu corpo jogado na cama depois do trabalho, em um dia qualquer de feira.

E, também, não deixe que eu me apaixone por você se for raso demais. Sabemos que vou mergulhar nesse desconhecido e que, no caso de acidente, serei cacos e não terei ninguém para me ajuntar.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Naufrágio II





Abandonando o cais,
Lanço-me no sem fim azul
Como um navio que escorrega no mar.
Ele percebe a beleza, a força,
Mas não pode prever a profundidade.
Por isso só segue nas horizontais.
Porque não saberia lidar
Com o que desconhece.
Talvez seja medo.
Talvez despreparo.
Um quê de insegurança.
Um muito de vontades aplacadas
Pelo sussurro do vento
Que dá calmaria, mas alerta:
Seu naufrágio é necessário.

domingo, 2 de outubro de 2016

Templo




(Foto: templo de Diana, Évora, vista da janela lateral do Palácio Episcopal, por Dy Eiterer, janeiro de 2016)
 
Da janela lateral,
Não era um quarto de dormir,
Mas grades que prendiam,
Há séculos, sonhos.
Entre as barras firmes,
Os olhos que resistiam
Chegavam ao Templo
E, aquilo que a boca não podia dizer,
Os olhos suplicavam à Diana:
Eram saudades
Da liberdade selvagem ancestral.
Escapavam pelas frestas
Da Casa Paroquial
preces pagãs
De um sentimento original.
Pouco importa se cabe ao corpo o açoite.
A alma é livre e dança ali nas ruínas.
Ouço seus ecos.
Ouço seu melodia.
Acolho em minha retina,
Em minhas lentes,
A visão mais bela,
Mais sofrida,
Mais real do tempo que passou,
Mas que ainda permanece.

sábado, 1 de outubro de 2016

Economias





Economizei palavras. Muito mais do que deveria. Não nos poemas. A esses mantive a rotina e os enchi de tudo quanto poderia: de palavras a sentimentos, de cores a sons.
Não é porque está escrita que a palavra não vibra, não toca a alma, não nos eleva aos céus e nos faz criança contando estrelas.
Economizei onde não poderia: ali, diante da única plateia à qual gostaria de ser ouvida e, tendo seus olhos, meus holofotes preferidos, distanciado o foco, já quase apagado, não sei mais se tenho o direito à palavra ou se tiver, não sei ainda tenho voz. Escapam-me certas compreensões de mim mesma.
Economizei por medo de assustar. Nunca se sabe onde os ecos do que é dito pode chegar. E, nesse exercício, também me assustei pelo tanto que guardei, pelo tanto que ainda tenho guardado, pela exposição que nunca fiz.
O que causa certo espanto é que, ainda assim, em meio a meias palavras e a falseações, nos entremeios do dito pelo não dito, houve uma compreensão silenciosa, tocante, fraterna. Um envolvimento de sentidos que só quem domina os silêncios e seus meandros consegue ter.
Meus silêncios gritaram até aqui, na economia de minhas palavras. E, ainda assim, olhos atentos me ouviram. De fato, não se deve subestimar as entrelinhas.                       
Existem leitores de alma por aí, sob o mesmo céu que me espanta e encanta. E eles me enxergam e me traduzem, como eu mesma já não acreditava ser possível. Seus olhos me ouvem quando eu não sei bem o que dizer.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Embates





Quando já não havia planos, minhas planícies foram invadidas silenciosamente na madrugada quase fria.
E, naquele corpo que há pouco pairava apenas em pensamentos, a lança atravessou, trazendo-o de volta à realidade.
Era como um exército invadindo fronteiras. Era guerra vencida, mas a batalha foi travada.
E, dos corpos que estavam no embate, suor, calor, resistência, força, cadência, suspiro.
Quando o empate alcançado e sustentado foi tido como acordo de paz, almas em chamas precisaram se acalmar.
Das fontes disponíveis para beber, afogaram-se no desejo de saciedade, só alcançado em mais uma luta, dessas que se estendem até o amanhecer.
Não fosse o sono implacável e os olhos desertores, os corpos estariam ainda em luta: certas batalhas são necessárias.