Tinha brasa
no peito. Uma brasa de tempos ancestrais, talvez. Não sabia ao certo de onde
era o sangue que lhe corria nas veias, mas o sentia quente. Como o fogo que a
consumira pelos séculos que atravessara.
Nas eternidades
que via findar todas as noites, quando o sol rompia a barra da noite, saltava
pelas fases da lua, reinventando-se como podia. Mais ou menos triste, mais ou
menos feliz, tocando seu ritmo nas próprias tripas das quais fazia sua lira
dolorida, com canções de melancolia.
Vivia seu dia das bruxas, de fogueira de vaidades e de palavras
vãs que a condenavam à solitária, crueldade que dilacerava. Dispensava a
fantasia, qualidade-erro de quem pouco sabe da vida. Logo ela que amava... logo
ela que ainda cria na humanidade, na bondade, na gratuidade de todo
sentimento... foi rasamente julgada, vilmente condenada a um mundo cru e se
sentia nua, exposta e tremia.
Nas horas agalopadas, rendia-se a todos os santos e lhes pedia
ajuda. Ladainhas desfiou pela madrugada que se fez ao meio-dia. E o tempo lhe
foi generoso e fechou. E se derramou. O céu, complacente, chorou com ela. Rasgou-se
ao meio, para igualar-se à sua filha. As estrelas negaram-se a brilhar por toda
parte. Apagaram-se, embora pudessem apenas estar escondidas atrás das nuvens.
A chuva que molhava as ruas também jorrava dentro dela, tanto
que mesmo fingindo-se de forte, os olhos escorriam. Tentou acalmar-se com o
azul, mas o céu era nublado.
De seus olhos, setas eram lançadas a toda direção, desesperadas,
sem rumo, sem alvo, e a acertavam em cheio, como se fizessem curvas. E doía.
Bebia, na palma das mãos, entre os dedos, a solidão comum dos
poetas e (versi)ficava aliviada a cada palavra que escrevia. Parindo-se em
poesias, em prosas quase desconexas, que só as entrelinhas faziam sentido, embriagava-se
de si e em si mesma.
Lá pelas tantas, os santos que clamava não foram suficientes. Preces
vãs ou respostas enigmáticas? Pouco se sabe dos divinos sinais. Pouco se sabe
do que está, de fato, escrito pelas tais linhas da vida. Exausta, ela quase se
entregava e já, então, era o dia dos mortos, embalados pelos sinos que ouvira
na cidade do interior, em dia de cortejo. Era o dia dos mortos, mas também dos
mortos-vivos: dos que se foram pra nunca mais voltar; dos que se foram e ainda
assim estavam por perto, para cuidar; dos que ela, em vida, sepultou para não
ter mais aquelas mãos entre as suas. E doía.
Não sabia, naquelas horas, quais cores usar para reviver a
alegria. Era tristeza. Era frieza. Era decepção. Estava moída. E, pela fogueira
que havia sido lançada, (eis o destino de quem domina a arte, de quem confia,
de quem ama as surpresas que são dadas pelo vento), se tornava alada: era
cinza, sua própria cinza, penitente.
Entendia, naquele momento, as calendas de novembro. Entendia,
naquele momento, os signos que carregava: se a necessidade de todos os santos existia,
também o fim era patente. E aprender a reconstruir-se era essencial.
Fogo-fátuo.
Fênix, talvez.
Reminiscências das tantas fogueiras das quais havia sido lançada
pelos séculos que atravessara. E era só (mais uma vez).
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