Acordei pela metade. Era como se o dia não fosse meu. Olhei à
volta e era tudo tão igual, tão do jeito que eu havia deixado antes de me
deitar, mas ao mesmo tempo tudo tão diferente, tão sem as minhas marcas... Achei
melhor fechar os olhos e contar até dez... Nove... Oito... Sete... Chega! Isso não
ia funcionar e, de qualquer maneira, era melhor levantar.
Coloquei o pé no chão. Era o esquerdo. E daí? Detesto convenções.
Essa coisa de acordar com o pé direito é baboseira. Levantei. Eu estava pela
metade. Nada fazia sentido completo. Nada era capaz de me preencher.
Olhei no espelho: os olhos estavam mais profundos. Mais provocadores.
Mais questionadores e me cobravam muito mais do que eu mesma poderia suportar. Ali
mesmo decidi me reinventar.
Rasguei-me por completo: o que era metade virou migalhas. Em poucos
instantes eu estava em cacos. Como pequenos pedaços de papel decidi não me
colar, mas me queimar. Peguei um fósforo
e ateei o fogo. Ah, o fogo... rapidamente me consumiu. Ardeu em mim e deixou-me
em brasa, tão quente quanto o sol que brilhava lá fora. Não virei cinzas. Virei
a própria brasa. Dessas que não se apagam, que esperam pra incendiar outra vez.
Que podem aquecer em uma lareira ou destruir uma vila inteira.
Matei-me. Era impossível continuar a viver sentindo-me pela
metade. Era impossível continuar sem saber o que faltava. Restava agora um meio
de me fazer nova. De me (re)viver. Do que havia sobrado do incêndio fiz meu
pão. Eu, enquanto brasa, aqueci meu sangue novamente. Deixei-o fervente, para
que ao percorrer as minhas veias pudesse me encorajar.
Travei uma guerra comigo mesma, lutando contra tudo de morno que
fui ajuntando nos cantos da vida. Travei uma batalha contra os entulhos de
pessoas que não me acrescentam. Empunhei a espada para dissipar todo resquício
de lágrimas que ficaram paradas no canto de meus olhos, empoçadas pelo caminho.
Chorei por ter chorado. Briguei com a tristeza que me assolava. Quebrei-a como
um cristal e joguei fora seus cacos.
Bebi uma dose de meu próprio veneno que se fez antídoto: provei
da dor que já causei, sofri com as dúvidas que semeei, petrifiquei-me com o
desprezo que lancei. Como me matei, me revivi. Como me envenenei, me curei. Ergui-me
diante de mim mesma mais forte, mais decidida, mais cheia de mim e de gana.
Em meio a minha própria guerra trouxe-me a paz que já habitava
meu coração, porque sou fera, sou escorpião, mas também sou mulher e sei ser anjo.
Oscilo entre a razão e a paixão, entre o medo e a coragem, entre o riso e o
choro, entre o quente e o frio. Jamais me equilibro. E gosto dos extremos. O limiar
das fronteiras é mais bonito se visto bem de perto. Assim como os olhos de quem
se aproxima.
Hoje acordei e estava pela metade.
Hoje me matei e me reconstruí.
Hoje me refiz e me preenchi comigo mesma. Descobri que toda calma é santa, que nem toda
loucura é vã. Descobri que meu céu pode ser um inferno e que as palavras me
aliviam e me sufocam, me libertam e me aprisionam.
Hoje respirei fundo e descobri que mesmo sendo curta, a vida
pode ser tanta...
1 Comentários:
Certa vez, também acordei pela metade
E me fudi procurando a outra parte
Procurei noutras carnes, noutros sabores
O tempo passou como uma sanfona
as vezes rápido, as vezes lento
no início me incomodava, até aprender o embalo: cada instante, um acorde
Foi quando acordou a metade que em minha metade habitava
Essa é a dízima infinita da vida
Resutado que ninguém consegue explicar
Como quem olha o relógio sem os ponteiros
Eu vi o amor dividir o todo em dois inteiros
www.sabadoeterno.tumblr.com
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