Visitas da Dy

domingo, 27 de abril de 2014

Colecionadora de Sonhos


De pequeninas mãos brancas a menina de cabelos escuros corre atrás de borboletas no jardim.
Quem a observa tem quase certeza de que existem mais borboletas em sua imaginação do que entre as flores.
O som da risada ecoa e faz ritmo com um veio d’água que passa perto. Barulho de criança sempre enche todos os espaços e com ela não seria diferente.
A pequena de pele clara prefere esconder-se atrás das folhas de um verde mais escuro, na sombra, esperando o sol se encoberto pelas nuvens. Não que não goste do calor, mas porque gosta de olhar para o céu e a sua absurda beleza infinita circundada de azul.
Ela sabe que as nuvens não são de algodão. É uma das poucas crianças a ter certeza que as nuvens são sonhos que vão se aglomerando sobre nossas cabeças. Eles ficam no alto não para nos mostrar que são impossíveis ou inatingíveis, mas dizer que são divinos. Que nos elevam na sua busca e nos deixam lá, no céu, quando são realizados.
Ela também sabe que muitos desses sonhos passam da hora. Por isso eles escurecem e se derramam. A chuva é o precipitar dos sonhos não realizados. É o reconhecimento de que desistimos, de que tentamos pouco, de que preferimos nos fixar na terra. E a chuva é isso: é a volta dos nossos sonhos para a terra.
A menina de olhos curiosos que fita o céu sabe bem onde coloca os seus sonhos: eles são os guias de seus passos pueris. Quem sabe será uma princesa? Quem sabe habitará histórias ou as contará?
Para os sonhos que ainda não tem certeza, reserva-lhes a fronha do travesseiro e dorme sobre eles todas as noites. Para aqueles sonhos não realizados – não os dela! – ajunta as gotas em dias de chuva e coloca num aquário: tem esperança de que seus peixinhos os deixem coloridos e que eles voltem para o céu, arrancando sorrisos e suspiros.

A menina de mãos pequeninas já é colecionadora de sonhos e sonha chegar muito longe, correndo atrás de cada item novo para a sua coleção.

sábado, 26 de abril de 2014

Final(idades)


Reconheço que perdi. Paro diante dela e sou obrigada a reconhecer sua vitória.
Em minhas lembranças sempre a via de negro, mas hoje, sua altivez resplandece alva, com véus e saias longas e arrastadas sobre o tapete e as flores. Flores que exalam um perfume que para alguns são compostos de notas doces, mas a mim são mais enjoativos do que outra coisa. Chego a ter náuseas.
A comparação é inevitável quando nos encontramos no mesmo quadro. É notável que aparento mais vigor, mais energia, que pareço uma explosão de sentimentos e impulsos, que pareço ter nos lábios levemente avermelhados meia dúzia de palavras fortes para dizer, mas são tantos cristais nos olhos a esconder...
Ela, ao contrário, pálida. A cada minuto mais branca, mais estática. Com o rosto sustentando um quê de sorriso de Monalisa que todos comentam sem saber ao certo que palavras usar ou que palavras calam.
Por nossos sentimentos únicos nos tornamos quase gêmeas. Não fosse a exigência monogâmica do destino, quase poderíamos dividir o mesmo espaço no peito dos homens que conquistamos. Somos, em realidade, inseparáveis.
Em certa medida travamos, a todo tempo, uma disputa de nossas conquistas: eu, com meus atrativos mais alegres, encarnada em cores quentes, despertando sensações de meio-dia, de tardes de domingo, de primaveras confiantes e verões intermináveis. Ela é mais reservada, melancólica, transitando entre o entardecer e o amanhecer, timidamente exposta, com dedos longos e frios a ajeitar madeixas loiras que escondem bem suas intenções.
Por nossa necessidade e fim nos tornamos inseparáveis. Uma é dependente da outra e nos completamos. Por mais que sejamos desejosas de um mesmo corpo, não podemos dividi-lo, mas sabemos que a cada hora uma de nós o terá.
Reservo-me os melhores dias. Os mais alegres. Mas meu tempo é breve quando ela aparece. Cabe a ela selar os fins. Por o ponto final. É mais forte que eu. Por isso reconheço minha derrota.
Estou aqui reconhecendo nossa complementaridade, não como quem se dá por satisfeita ou desiste da luta, mas como quem sabe que todo camelo, no meio da travessia, precisa de um oásis; como quem sabe que toda hora se encerra; que toda vírgula prenuncia um ponto.
Estou aqui como o fio que nos une e nos separa, como o caminho que leva ao destino de todos e entrego cada um dos que tive pelas mãos às mãos dela. Estou aqui assumindo que todo início tem um fim e que por ser a vida só posso conduzir à minha quase gêmea, à morte.

Reconheço que perdi. O fim da vida é mesmo entregar o último sopro à morte, mas desfaço a sua lembrança enlutada e a coloco mais leve, mais translúcida. Enquanto vida que foi de fato vivida, entrego os pontos finais rumo ao descanso sagrado, à noite amena de sono eterno, sonho e esperança. Que seja a morte uma dama de companhia que nos guia para um mundo melhor. Que seja ela a irmã quase gêmea e entendida em sua necessidade final.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Salvação II


Em meio a tantas paredes frias,
Descoloriam-se as fantasias.
Tudo o que parecia restar era a conformação,
Cartesiana como a fome se dá pela falta de pão.
Como se o frio da chuva não bastasse,
Como se o inverno jamais terminasse,
Todos os casacos do mundo não aqueceriam,
Todos os ouvidos do mundo não ouviriam.
Os ecos das vozes roucas seriam esquecidos.
Poesia já se transformava em coisa de tempos idos.
Ninguém parecia ouvir os poetas e os versos choravam.
Ninguém sabia mais amar e as pessoas se isolavam.
Foi então que uma luz se acendeu:
Na ponta dos dedos o milagre floresceu!
A menina de olhos curiosos e vivos
Encantou-se pelos livros!
Salvou a humanidade:

Livrou-a de  toda insanidade.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Café II



Acaba a escuridão da noite
Entro na escuridão do dia,
Naquela que me refaz,
Que me enche de energia:
Escorrendo rápido pelo coador,
Seu cheiro me lembra de fazer uma prece.
Deus do céu, dá-me sabedoria,
Deus do céu, aumentai a minha fé,
Deus do céu, amenize as dores do coração!
Do outro lado do balcão da padaria,
Vejo o vibrante café,
Companhia sagrada do pão,

Reavivamento meu pelas horas esvoaçantes.

domingo, 13 de abril de 2014

Diametralmente


Perdida em si mesma vagava pelas horas que corriam no fio da espada do tempo. Cortante. Corrente. Arrastado pelas noites, acompanhado de gemidos contidos para não incomodar as vizinhanças. Vestia-se de branco e combinava-se com seus fantasmas interiores.
Pela janela, quem a visse só teria duas opiniões: assombração da meia-noite caminhando em plena metade do dia ou jovem louca. Demente. Entrementes ela se deixava alheia aos comentários. Não precisava deles.
Com o olhar fixo em um ponto invisível no horizonte, quando as pálpebras se baixavam, eram como pesos mortos. Cortinas que encerravam atrás de si o mundo inteiro. Morto. Fosco. Sem viço. Como os seus planos abortados e histórias não escritas.
Esse cenário estático e dormente durava só um suspiro, um lamento, um quase desespero dissipado com o reerguer dos olhos. Tudo renascia quando ela movia a cabeça e ousava olhar de novo. Tudo se iluminava pelo seu sorriso de nuvens em céu de metrópole acelerada.
Por certo aquela tristeza era inventada. Ninguém poderia ser tão infeliz em um momento e em um segundo próximo irradiar toda alegria que continha aquele sorriso. Um único rosto não poderia ao mesmo tempo encerrar as letras do mundo, letras tortas e sem sentido, e se abrir em um dia de domingo ensolarado, rimas de poesia harmoniosa.
Se inventadas ou reais, não eram órfãs toda tristeza e alegria que pairavam na sala e que podiam ser vistas pela janela. Eram tomadas com o devido gosto pela jovem que valsava de branco nas tardes avermelhadas ou nas noites de azul questionador. Eram cuidadas como crianças galopantes que não deixam a casa parecer vazia em nem uma hora do dia.
A jovem sabia ser a dona de sentimentos tão diametrais quanto complementares e isso não a incomodava. Ao contrário, deixava-a mais tranquila, mais convicta de que era capaz de perceber as sutilezas de cada momento.
Quando vista como assombração, marcada pela tristeza incompreendida, enfeitiçava os passantes. Aparecia-lhes nos sonhos, estreitando suas camas e perguntando a eles o porquê da permissividade em sufocarem-se todos pelos desprazeres cotidianos.
Por outro lado, quando vista como louca, era pelo riso quase insano. Pelo sorriso largo, branco e devorador de sombras. O som de seu riso era canção. Melodia agradável que beijava os ouvidos e enchia os olhos. Impossível não serem vistos quando os olhos se fechassem. Impossível não ouvi-los quando a boca abria querendo jogar ao vento confissões matinais.
Criatura docemente triste, levemente feliz, sutilmente equilibrada em dramas cômicos e comédias trágicas que lhe conferiam um caráter diferente a olho nu, mas que diante de lentes revelava-se igual a todos em seu íntimo. O que a deixava mais propensa a receber títulos era a sua transparência.
Interpretava, ela mesma, os seus próprios papeis. Protagonista de suas próprias histórias e desventuras, com o peito aberto e nervos à mostra. Segurava suas dores sozinha e não tomava remédios para elas. Aprendia gota a gota que amargos eram os outros e não a vida.
Aceitava queimar-se no fogo que trazia no peito e acalmar-se com as lágrimas que lhe rolavam pelo rosto. Era fogo que vertia água. (E todos são, mas poucos o sabem ou se assumem tão opostos a si mesmos).
A jovem que parecia vagar sozinha, perdida em si mesma era consciente e não louca. Era real e não um fantasma. Mas incomodava aqueles que não sabiam lidar com seus sentimentos, suas imperfeições e que não se deixavam ver completamente nem por si nem pelos outros.

Ela era igual a qualquer ser vivente sobre a Terra, mas aprendeu a aceitar a si própria e por isso parecia de outro mundo. Ela aprendeu que seu equilíbrio era o fio da espada e que poderia trazer alguma dor, mas que com a medida certa a levaria cada vez mais longe. Por ter se encontrado, parecia perdida, mas era só questão de se saber de que lado era observada. Só quem a via de dentro para fora entenderia.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Pen(s)ar


A cabeça girava mais que um girassol nas tardes alaranjadas de verão. Os seus sóis eram as ideias. Preferia o silêncio turbulento de suas reflexões às tagarelices intermináveis e vazias.
Fazia do ato de pensar o seu esporte. Passava horas em lugares distantes, por mais plantada que estivesse no chão. Chegava a fazer parte da paisagem de tão comprometida com suas elucubrações. As noites eram combustíveis para suas ideias febris e sedentas de respostas e elos perdidos.
Ao longo de tantas madrugadas o pensar já se havia transformado em atividade terrível: tirava-lhe o sossego, o sono, a calmaria e conduzia a passos lentos, mas contínuos ao cansaço.
Pouco a pouco o gosto pela solidão aumentava, assim como o apreço por certa ponta de tristeza e desapontamento observados pelas janelas abertas de suas reflexões. Chegava a ser movida pela vontade de não pensar, de poupar-se à tarefa que lhe desgastava pelas madrugadas sem fim.
Imersa em si mesma já sentia um penar no ato de pensar. Muito maior, é verdade, se era chamada a expor-se. Não sabia mais em que medida deveria manter seus pensamentos soltos. Prendê-los e não mais pensar seria uma saída, mas, sobre isso, era preciso pensar.
Estava feito: estava condenada a si mesma, círculo vicioso do pensar (até em não pensar), de repensar e de se alterar, fluida como as próprias ideias, leves e confusas, emaranhadas e dispersas, vigorosas e tênues, possíveis ou insanas.

Pensava. Voava. Abria-se em si mesma e se recolhia com as asas maiores, capazes de voos longos e cada vez mais perto do sol: sabia que não cairia, suas asas não eram com as de Ícaro, mas como as de Ísis, que humildemente sempre se lembrava de todos os começos.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Da Salvação I



Porque as letras, mesmo as mortas, esquecidas,
Trazem em si a essência de quem as escreveu.
Trazem em si o calor no qual foram pensadas,
Os tremores de quando foram ditas,
Os rabiscos das mãos afobadas,
Pouco importa se são garatujas ou caligrafias.
As letras soltas ou não,
Voando ao vento, alheias, flutuantes
Ou presas, ancoradas em nós, fixadas no pensamento,
Nunca estão de todo perdidas.
Ah, as palavras que teimam,
Que correm pela veia,
Que queimam, que ardem e tiram a paz...
Ah, as palavras que saciam, que matam a sede,
Que devolvem o sossego quase celestial...
Ah, as palavras que conseguem ser inferno e paraíso,
Guerra e paz,
Janela e paisagem.
As palavras nunca são perdidas:
Sempre há o que se salvar,
Sempre há quem salvar.

Sempre há um bom motivo para não calar.